Candomblé: na encruzilhada da tradição e da modernidade.
Irei tratar de forma esquemática algumas considerações sobre os candomblés da Bahia, os mais variados candomblés, aqueles chamados de casas tradicionais e os que estão fora desse eixo, dialogando com a categoria que é manipulada pelo agentes religiosos que é a categoria de tradição.
A noção de campo é a que mais contempla o estudo das religiões afro-brasileiras, particularmente, no caso de Salvador, o candomblé. O campo é compreendido por Bourdieu como o espaço social das relações de força mais ou menos desiguais, em que os protagonistas, agentes dotados de um domínio prático do sistema, de esquemas de ação e de interpretação, se situam com posições bem demarcadas, levando consigo, em todo tempo e lugar, sua posição, presente e passada, na estrutura social sob a forma de habitus.
Os agentes dos candomblés travam uma luta pela distribuição de um capital específico acumulado em lutas anteriores a formação desse campo minado por dissensões, que acaba por delinear como uma marca o campo cientifico do estudo de religiões afro-brasileiras.
O campo é o espaço do jogo e o habitus o social inscrito no corpo, “no indivíduo biológico, permitindo a produção, reprodução e difusão de uma infinidade de atos de jogo que estão inscritos no jogo em estado de possibilidades e exigências objetivas” (Bourdieu; 1990:82). O habitus é um conhecimento adquirido, consistindo em um sistema de disposições duráveis e transmissíveis, predisposto a funcionar como princípios geradores e organizadores de práticas e representações de um estilo distintivo de vida, funcionado, a cada momento, "como uma matriz das percepções, apreciações e ações, e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas, e às correções incessantes dos resultados obtidos" (Pinto; 2000: 65), sem que tenha por princípio a busca consciente do objetivo.
O campo religioso é organizado em um sistema de relações entre os detentores do monopólio da gestão dos bens sagrados e os leigos, e se constitui pelas posições adquiridas entre o corpo de especialistas e fíes, em lutas anteriores para a própria consolidação do campo, tendo por excelência um espaço em que tem lugar um luta concorrencial pelo controle dos bens simbólicos.
A religião funciona como um princípio de estruturação que constrói a experiência, ao mesmo tempo em que a expressa, pelo efeito da consagração ou legitimação. A religião submete o sistema de disposições em relação ao mundo natural e ao mundo social a uma mudança na natureza “em especial convertendo o ethos enquanto sistema de esquemas implícitos de ação e de apreciação em ética enquanto um conjunto sistematizado e racionalizado de normas explícitas.
Por todas razões, a religião está predisposta a assumir a função ideológica, função prática e política de absolutização do relativo e de legitimitimação do arbitrário” (1982:46). Neste sentido, a religião consiste no reforço do material e do simbólico possível de ser acionada por um grupo ou uma classe, garantindo legitimidade a tudo que define este grupo ou está classe. Logo, a religião permite a legitimação de todas as propriedades objetivas e subjetivas de um estilo de vida singular, por representar a religião a inculção de um habitus.
A constituição do campo das religiões afro- brasileiras.
No campo das religiões afro-brasileiras, o candomblé se constitui em uma das vertentes mais destacadas na área urbana do Brasil. Organizado em um sistema simbólico, que funciona como um princípio de estruturação de uma experiência de ação intra-mudana e produz um ethos “enquanto sistema de esquemas implícitos de ação e de apreciação” (ibd; 146).
Com base em Weber, Bourdieu argumenta que o processo de racionalização religiosa envolve a transformação do ethos implícito em ética - conjunto sistemático e racional de normas explicitas. A ação pedagógica do sistema de crença afro-brasileiro é norteada pela tradição oral de transmissão e preservação dos preceitos sagrados. Entretanto, também podemos observar no candomblé um trabalho crescente de racionalização desenvolvido por uma camada de intelectuais interna à própria religião que orienta todo o pensamento do grupo. Constituindo cada vez mais para a transformação do ethos em ética, no sentido que Weber dá ao termo.
O campo religioso tem por função específica satisfazer um tipo particular de interesse, isto é, o interesse religioso que leva os leigos a esperar de certas categorias de agentes mediadores na experiência religiosa, que realizem ações mágicas ou religiosas, ações, fundamentalmente, “mundanas” e práticas, conduzidas com a finalidade de que tudo corra bem para o corpo de fieis, que aderem a um sistema de crenças e a um estilo de vida particular.
As religiões afro-brasileiras, em particular os candomblés, se constituíram como um empreendimento de diversos agentes religiosos, que resultou na formação de um corpo de sacerdotes responsáveis pela sistematização de um ethos religioso calcado nas diversas tradições africanas. Esse corpo de especialistas detentores de um capital religioso, com um domínio prático dos esquemas de pensamento e normas e conhecimentos está incumbido de reproduzir o capital religioso.
Os pais e mães-de-santo dos terreiros de candomblé são reconhecidos como detentores exclusivos de um monopólio na gestão dos bens sagrados. Detentores de um domínio prático de um conjunto de esquemas de pensamento, somados a presença de traços africanos, em maior ou menor intensidade, passaram esses traços diacríticos a funcionar como elementos definidores de suas legitimidades e competências, necessários à produção e reprodução de um corpo deliberadamente organizado de conhecimentos esotéricos e secretos. Suas autoridades são inquestionáveis no âmbito mítico-ritual, seus perfis de liderança são desenvolvidos na dinâmica concreta dos seus terreiros, pela sua capacidade de manter a estabilidade, controlar os conflitos, de garantir o recrutamento contínuo e evitar a deserção dos membros e da clientela, processo que consolida e a prova sua legitimidade pela competência em administrar os bens sagrados.
É o pai ou mãe-de-santo que os fieis vêem como a “âncora” ou o “porto seguro” contra os perigos do universo das aflições. Os seus sucessos e fracassos vão lhes conferindo uma identidade, atribuindo uma identidade aos terreiros que administram, enquanto uma entidade reconhecida no campo religioso, que revela o resultado de suas decisões e ações, mediatizados pela rede de relações e circunstâncias que poucas vezes chegarão a controlar completamente. Desta maneira, o sacerdote e o terreiro se identificam, pois os destino de ambos estão interligados (Bruman & Martinez;1991:150).
A constituição do campo religioso afro-brasileiro implica um primeiro corte entre os detentores do controle dos bens religiosos- iyalorixás e babalorixás – e aqueles que lhes são subordinados: os abiã, iawô, egbomi, ekedes e ogãs e a clientela. Segundo Weber (1991), os sacerdotes sistematizam o conteúdo da promessa profética ou das tradições sagradas no sentido da estruturação racional-causuística e da adaptação destas aos costumes mentais ao estilo de vida de sua própria camada e daquela dos leigos por eles dominados (1991:315), processo este que é marcado por uma dinâmica de poder envolvendo alianças e negociações e por vezes conflitos abertos.
Os responsáveis pela formação e consolidação das “roças” foram uma camada religiosa, liderada pelas Iyás (mães, zeladoras) e Babás (pais) auxiliados por uma confraria hierarquizada, constituindo um corpo de especialistas socialmente reconhecidos entre os escravos e libertos, nos meados do século XIX.
Esses indivíduos se destacaram pelo seu carisma e pela posição que alguns deles ocupavam na estrutura religiosa na África; no Brasil passaram a ser reconhecidos como detentores exclusivos de uma competência, necessária a produção/reprodução e difusão do sistema de crença africano, transformado em afro-brasileiro
O campo das religiões afro-brasileiras, em particular aquele conformado pelos terreiros de candomblé foi organizado, inicialmente, de forma cooperativista, tecendo alianças entre as etnias, que muitas vezes eram rivais historicamente no continente africano, existindo no interior dessas comunidades uma permanente ajuda mútua, trocas de favores, mantendo-se assim uma solidariedade via teias de prestações e contraprestações que terminaram “por engendrar relações mais próximas, contatos mais efetivos e afetivos, muitas vezes consolidados pelo estabelecimento de laços religiosos duradouros” (Braga;1995:60).
Essas redes de relações entre os agentes religiosos levaram a criação de organizações conventuais, estruturadas em normas e padrões étnicos, manipulando determinados sinais diacríticos (língua, culinária, sistema mitológico, rituais, etc.,), em oposição a outros sistemas de crenças, oriundos do continente africano e dos índios brasileiros.
Essas organizações conventuais são os terreiros ou roças de candomblé. São instituições resultantes da manipulação dos traços identitários das civilizações africanas que se organizaram em nações, aqui no Brasil. Desse modo, a nação não é apenas a procedência territorial (Costa Lima;1997: 77-8), mas sim todo um conjunto de padrões ideológicos e rituais.
Se o tráfico de escravos foi um fator de desagregação étnica, paradoxalmente, foi também um componente da construção de novas identidades e novas tradições na América. Essas identidades chamadas de nação adquiriram um uso suficientemente amplo para integrar diversas tradições, funcionando como uma rede, ou melhor, constituindo uma teia de alianças. O terreiro passou a condensar os valores de uma África mítica. Isso significa dizer que os Orixás na África pertenciam a localidades (grupos étnicos) diferentes e transplantados para o Brasil passam a se concentrar no mesmo território.
O terreiro (egbé) é o espaço físico impregnado de signos que revelam a consciência ancestral, não sendo apenas uma área delimitada geometricamente. No terreiro estão presente as representações do aiyé (terra) e do orum (espaço transcendental), representado nos assentamentos dos Orixás e Eguns, Exu e Caboclos. Decerto, o terreiro é o lugar pertinente a manipulação de símbolos pelos fieis que partilham uma socialização calcada na herança, conjunto de bens simbólicos que se recebeu dos ancestrais.
E foi o terreiro o expediente mais eficaz na manutenção de uma tradição re-semantizada e resimbolizada. Os terreiros de candomblé organizados enquanto uma comunidade com características próprias de área verde, representando a floresta sagrada, o barracão, salão principal das festas públicas com espaços delimitados aos membros efetivos da casa e à assistência, as áreas sagradas destinadas à iniciação e reclusão dos neófitos, as casas dos Orixás, como pode ser visto atualmente, se constituíram como informa a literatura etnográfica afro-brasileira (Carneiro, 1948; Costa Lima, 1977) no primeiro quartel do século XIX. Como nota Serra (1995:33) os cultos afros já eram realizados há bastante tempo e a indicação de uma faixa temporal, por certo, se refere à criação de um modelo de culto dominante.
Importância conferida a tradição nagô.
Na Bahia, os candomblés almejavam o ideal de pureza de suas nações severamente exigido pelos sacerdotes e sacerdotisas, a exemplo de Martiniano Eliseu do Bonfim e Mãe Menininha do Gantois (Pierson; 1971, Landes; 1967) que endereçavam as suas críticas especificamente aos sacerdotes que introduziam na prática religiosa o culto dos Caboclos, e que admitiam o transe nos homens (...) “estão acabando com tudo, estão jogando fora nossas tradições. E permitem que homens dancem para os deuses”(Martiniano Citado em Landes; 1967:38).
Aos olhos severos dos sacerdotes da tradição dos candomblés jeje-nagô do início do século passado (Pierson;1971 Landes;1967), os candomblés que inseriam em suas práticas o culto dos Caboclos, também chamados de encantados (Carneiro;1991), estavam "deturpando" a tradição jeje-nagô.
Pierson (1971) aponta para uma quebra da pureza de alguns terreiros de candomblé que já tomavam de empréstimo cerimônias de outras nações e inseriam os cultos de Caboclo, sendo alvo constante de desprezo pelos líderes ortodoxos da tradição nagô. O pai-de-santo, Francisco da Roça Branca era questionado quanto a sua competência e legitimidade frente a tradição, por um velho sacerdote a Donald Pierson:
Quem são os seus avós, que é que eles sabiam? Foram educados na seita? Será que deixaria o cargo para ele? Não . Ele veio do sertão e quer fundar um candomblé. Apreendeu um pouco de gege, um pouco de nagô, um pouco de Congo, um pouco dessas coisas de índio e assim por diante. Que mistura desgraçada? (Pierson;1971:305).
Outra mãe-de-santo ortodoxa vangloriava-se de seu candomblé ser nagô puro, apontando para a mistura nos terreiros de então, os novos, com a “bobagem de caboclo”. Continua a mãe-de-santo: “Ora, êles não sabem nada do jeito de fazer estas coisas da África.” (Pierson;1971:305)
Acredita Donald Pierson que as disputas e mexericos a respeito das práticas não ortodoxas se dava em grande medida pelo decréscimo do número de africanos, aumentando assim a competição entre os terreiros. Os terreiros tendiam a romantizar o prestígio dos “velhos africanos” como Bamboxé, Adetá, Ialode Erelu e outros. Da mesma maneira, detinham prestígio os líderes mais velhos ainda vivos no culto, como o babalaô Martiniano, Mãe Aninha e a velha Maria Badá, todos considerados representantes legítimos da “mais pura” tradição africana (ibd;339-340).
Landes efetivou uma pesquisa de campo nos candomblés baianos nos anos de 1938 e1939[1]. Ela destaca o culto de Caboclo na roça de Mãe Sabina. Iniciada no culto por Silvana, com quem rompera laços, Mãe Sabina mostra-se frente a Landes mais preocupada em expandir seus serviços religiosos no mercado dos bens simbólicos do que em manter o ideal normativo da tradição. Usava vestidos “bem talhados” em vez das habituais saias rodadas, maquiava-se à moda da época, com o rouge tão censurado por Menininha no que toca a apresentação de sua filha Cleusa. Sabina ainda alisava os cabelos a ferro quente, sendo alvo constante de severas críticas pelas "grandes mães", que interditavam em suas filhas-de-santo o uso do ferro quente sobre as cabeças, moradas dos Orixás.
Do mesmo modo, o babalaô Martiniano Elizeu do Bonfim expressava seu preconceito aos Caboclos: acreditava que os cultos de Caboclos viriam a “deturpar” a tradição nagô. Além do mais, os cultos de Caboclos permitiam a inserção do transe masculino, considerado e associado aos homens com comportamento homoerótico (Birman:1995).
Segundo Martiniano a possessão pelos Orixás nos candomblés iorubás tinha um caráter feminino, conforme se observava nos candomblés de Aninha (Axé Opô Afonjá), de tia Massi (Casa Branca) e de Menininha (Gantois). Do ponto de vista de Martiniano os terreiros que cultuavam o Caboclo se proliferavam por toda parte em grupos de cultos sem tradição.
A penetração do culto dos Caboclos se deu inicialmente, nos terreiros da nação Angola, apesar de que atualmente a maioria dos terreiros de nação keto realizam uma festa anual para os Caboclos, excetuando os candomblés do Engenho Velho, a Casa Branca, o Gantois [2] e o Axé opô Afonjá, [3] como no tempo de Martiniano. Contudo, os filhos-de-santo dessas casas-de-santo podem vir a receber seus Caboclos, com a interdição de não receberem essas entidades nos terreiros em que foram iniciados.
Os primeiros estudos antropológicos sobre o universo das religiões afro-brasileiras foram realizados sobre os candomblés nagôs. Edson Carneiro foi o primeiro a mostrar interesse pelos candomblés tidos como não puros ou poucos ortodoxos conforme avaliava serem os candomblés bantos e os de Caboclo.
Pertencente a escola baiana dos estudos afro-brasileiros, fundada por Nina Rodrigues, Carneiro tem sua obra eivada do etnocentrismo em vigor na época. Entretanto, ainda nos serve de ponto de partida para o estudo dos Caboclos, pela minuciosa descrição das cantigas e nomes dos Caboclos cultuados outrora na Bahia[4].
Contudo, a noção de pureza dos cultos afro-brasileiros é facilmente, reconhecível na analise da literatura antropológica do inicio do século XX, nas obras de Nina Rodrigues, Artur Ramos, Edson Carneiro, Ruth Landes, Roger Bastide até a década de setenta do século passado.
Os intelectuais buscaram uma correspondência entre a valorização da tradição africana e a valorização de uma tradição anti-sincretica, “pura”, que remetia tanto a uma perspectiva intelectual de pensar o afro-brasileiro, quanto a uma prática religiosa mantida pelas casas-de-santo tradicionais na Bahia.
A concepção de pureza foi discutida por Dantas (1988) que imputa o ideal normativo de puro do modelo jeje-nagô ao papel constitutivo dos intelectuais nas suas configurações analíticas de uma valorização da África.
A disputa pelo monopólio dos bens religiosos ente os praticantes das religiões afro-brasileiras, tendo como capital a tradição africana acabou tendo uma ressonância no campo cientifico que a estudava.
Escreve Dantas:
a pureza nagô, assim como a etnicidade seria uma categoria nativa utilizada pelos terreiros para marcar suas diferenças e expressar suas rivalidades que se acentuam na medida em que as diferentes formas religiosas se organizam como agências concorrências no mercado de bens simbólicos (Dantas; 1988:148).
Dantas acredita que a construção ideal típica jeje-nagô teve grande influência dos intelectuais que realizaram suas pesquisas nas casas-de-santo tradicionais baianas da nação keto. Para ela os intelectuais transformaram a "pureza nagô" de categoria nativa em categoria analítica, através do modelo nagô, tido como o mais puro, original para cristalização de traços culturais que passaram a serem tomados como expressão máxima de africanidade.
Desde o início dos estudos científicos sobre o candomblé, os pesquisadores das religiões afro-brasileiras, com tendências a explicações em termos de genética cultural classificaram os terreiros de suposta origem iorubá como sendo, de algum modo, mais “puros” que os de origem banto”. Desse modo foram classificados de impuros os que não tinham absorvido as práticas iorubá (Fry; 1982:50).
Para Ferreti (1997) a crítica ao que se convencionou chamar tanto nos circuitos acadêmicos como entre o povo-de-santo de “pureza nagô” não pode ignorar a tradição preservada em muitos grupos de Candomblés baianos e Xangôs pernambucanos e a Casa das Minas em São Luís, como vem fazendo alguns autores que a consideram uma invenção intelectual.
Tem-se em mente que este é um problema que diz respeito às disputas de poder e prestígio tanto no campo acadêmico quanto no campo religioso (Ferreti;1997:70-1). A idéia de pureza foi idealizada pelos pesquisadores concomitante com a idéia de tradição, relacionada com a história de cada casa-de-santo na preservação dos costumes e valores dos ancestrais africanos.
A partir da década de setenta, do século XX, inaugura-se uma série de análises mais atentas para as transformações das religiões afro-brasileiras, identificando uma nova morfologia social dos terreiros de candomblé. Passando a valorizar a descontinuidade, não mais presas a uma postura metodológica preocupada com pureza, origens e equilíbrio, essas análises chamaram atenção para o fato de que fazer ciência social é estar atento para qualquer forma de visão de mundo empreendida pelos atores sociais.
Como assegura Birman a dimensão sistêmica que pode, portanto, ser encontrada em qualquer lugar, inclusive (sobretudo) nas formas chamadas de sincréticas (Birman;1997:82), candomblés de nações misturadas, candomblés da nação Angola, candomblés de Caboclo e umbandas.
O papel dos intelectuais de ”dentro”.
Na história do campo afro-brasileiro a importância conferida aos elementos da tradição nagô encontra seu marco na figura de Martiniano. [5] Ele é um personagem importante na memória coletiva do povo-de-santo, mas importante também no processo de uma reafricanização dos candomblés da Bahia, vale ressaltar que foi um dos principais informante de Nina Rodrigues, que lhe pagava regularmente pelas suas informações, o próprio Martiniano revela a Landes e a Edson Carneiro.
Nascido sob a escravidão, fora enviado à África pelo pai, aproximadamente aos 14 anos, para estudar as tradições dos seus antepassados, tendo lá aprendido inglês nas escolas missionárias (Landes; 1967: 28-30). Martiniano, Ojeladé condenava a mistura de elementos de diferentes tradições e a camuflagem dos traços negros, como espichar os cabelos. Denunciava a indiferença pelas línguas africanas e censurava, com paixão, os terreiros que, liderados por mulheres, buscavam uma comunicação com os mortos.
Ressentia a falta de Mãe Aninha do Ilé Axé Opô Afonjá, onde participou ativamente, com o cargo de Ajimuda na casa de Omolu. Foi o presidente da União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia, cujos objetivos eram a imposição dos altos padrões tradicionais de conduta, assim como a defesa do culto contra a polícia que tanto atormentava os candomblés (Braga, 1995; Landes 1967).
Os “velhos” pais e mães-de-santo, em seu tempo, detinham um capital de autoridade. Bastide acredita que a razão dos velhos chefes dos candomblés tradicionais se oporem aos babalorixás “feitos do pé para a mão” (Bastide;1978:247), os sacerdotes que não passaram pelos rigores da norma introdutória das casas nagôs, chamados de “clandestinos”, estava no fato de que os seus poderes não dispunham de base alguma, ou seja referindo-se a uma ligação formal com uma casa-de-santo, através dos ritos iniciaticos.
Da mesma forma que os antigos chefes dos terreiros, os atuais, são movidos pelo seu prestígio e os seus interesses religiosos; ou seja, a necessidade de legitimação das suas propriedades materiais e simbólicos associados as suas posições de prestígio, frente aos cultuadores da tradição dos Orixás. A posição de destaque desses sacerdotes com suas mensagens religiosas foi, e ainda, é capaz de satisfazer os seus interesses religiosos, que tinham como capital a “tradição” frente a um grupo de seguidores constituindo o campo religioso das religiões afro- brasileiras (Bourdieu; 1974:51).
Elemento importante na história do campo religioso afro-brasileiro é a consolidação de uma camada intelectualizada proveniente dos próprios guardiões do candomblé, desde Martiniano-Ojeladé. Com a consolidação dessa camada de intelectuais de “dentro” verifica-se um movimento explícito de reflexão em torno de questões relativas à tradição e as mudanças nos procedimentos religiosos.
Esse movimento ganhou força a partir da década de setenta do século XX. Em 1974, um grupo de religiosos, sob a liderança de Mestre Didi, fundou a Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil; em 1981 o CEAO organizou o I Encontro de Nações de Candomblé, com a participação de acadêmicos e o povo-de-santo. Algumas Iyalorixás baianas das casas consideradas como as mais tradicionais, em 1983, assinaram um manifesto da dessincretização, ou descatolização, na Conferência Mundial da Tradição e Cultura dos Orixás (CONTOC)[6].
Para essa camada de intelectuais do candomblé, entretanto, seguir a tradição não é uma recusa a modernidade conforme transparece nas observações feitas pelo Pai Cido de Oxum no seu livro A panela do segredo (2000):
Nenhuma religião sobrevive se não acompanhar as mudanças que acontecem no mundo, seja no campo social, tecnológico, cientifico etc. O Candomblé, para sobreviver ao longo desses anos, teve que se modificar, e essa é uma realidade, embora alguns prefiram negar.(...). Manter uma mentalidade arcaica não é sinônimo de seguir a tradição. A tradição do Candomblé não reza que se deve ralar feijão-fradinho na pedra; aliás, esse recurso nada mais é do que tecnologia de determinada época. Atualmente, outros aparelhos, o moedor ou liqüidificador, por exemplo, ajudam a cumprir essa tarefa mais rapidamente e de forma mais eficaz. A maquina que faz a massa do acarajé[7] não muda a dedicação nem o amor do filho ou filha-de-santo.(2000:68)
Os sacerdotes dos candomblés baianos estão sempre lançando mão de um discurso de autoridade, em suas mensagens religiosas de fidelidade as tradições, como estratégia política de afirmação dos seus terreiros na concorrência pelo monopólio dos bens simbólicos.
É crescente o número de publicações escritas pelas pessoas de dentro do candomblé, como observa Gonçalves (1998), “etnografias domésticas”. Estas publicações são uma das estratégias utilizadas pelos sacerdotes para consolidar seus pontos de vista. Pai Cido enfatiza (2000) que “todo terreiro de Candomblé deve ter um site, para divulgar suas celebrações, contar sua história e convidar o mundo para conhecer o Candomblé” (ibd;70). É sabido da existência de sites de candomblé, cujo conteúdo varia da informação sobre a religião a serviços mágicos ofertados por essas agências.
O primeiro site sobre o candomblé foi o do Ilé Axé Opô Afonjá, elaborado pela filha-de-santo do referido terreiro Vera Felicidade - Oni Koiê. O site do terreiro do Opô Afonjá apresenta-se com o objetivo educativo de contar a história da casa, das suas Iyalorixás, da implantação do museu, voltado à preservação da memória da comunidade do terreiro. Conta ainda com as atividades educacionais desenvolvidas sob a liderança da Iyalorixá Stella Azevedo, que também, é autora de dois livros sobre o candomblé.[8]
Do mesmo modo, na busca de uma sistematização racional do candomblé em formas explícitas de reflexão, filhos-de-santo de classe média, ou vinculados a diversas entidades do movimento negro, ingressam nos cursos de pós-graduação, e têm escrito dissertações e teses sobre diversos aspectos do candomblé, desenvolvendo uma postura metodológica que enfatizam ser “de dentro para fora”, em oposição aos “intelectuais de fora”, cujo olhar, estaria contaminado pelas idiossincrasias ocidentais.
Nos seus terreiros esse grupo de filhos-de-santo, muitas vezes, não é visto com “bons olhos” pelos “mais velhos” sofrendo toda uma série de restrições, pois esses últimos não acreditam na “tradição das teses”. Mesmo assim os “intelectuais orgânicos” passam a constituir nos terreiros a qual são filiados uma camada de prestígio.
Os textos apresentados nos congressos e os livros que são editados por autores religiosos apresentam em muitos casos uma semelhança com as etnografias produzidas na academia, com as regras metodológicas de citação e referências bibliográficas, assim como a descrição etnográfica, a história dos terreiros, o esquema do panteão cultuado, os rituais, calendários de festas “e em alguns casos não faltam nem mesmo o desenho da planta do terreiro com designação dos diversos cômodos, semelhantes àquelas vistas nos livros de Roger Bastide e Edison Carneiro” (Gonçalves;1995:260).
Os sacerdotes autores que visam o estilo etnográfico acadêmico acabam supervalorizando esse estilo. Gonçalves (1998) observa que essa tendência dos “intelectuais orgânicos” do candomblé ao fazerem uso do estilo etnográfico acadêmico acaba por colocar em segundo plano “outras formas alternativas do grupo de auto-representar através da escrita” (ibd;198). Entretanto, pode-se observar alguns exemplos significativos na voz autorizada dos “de dentro”, e que não imputam ao leitor um estilo acadêmico.
Autores sacerdotes procuram expor a sua visão de mundo, particular da sua experiência do candomblé, através da inscrição dos mitos da tradição dos seus terreiros. Essa preocupação é mantida nas obras de Mestre Didi História de um terreiro nagô, Caroço de dendê de Mãe Beata de Iemanjá, filha do terreiro do Alaketo, Meu Tempo é Agora da Iya Stella Azevedo, que diz:
A tradição somente oral é difícil. Os Olórsà tem que se alfabetizar, adquirir instrução, para não passar pelo dissabor de dizer sim à própria sentença. A essência não se modifica, é o alicerce de tudo. Só pode passar Ase quem o recebeu. Ninguém ignora a avalanche de livros sobre o jogo de búzios, receitas de ebó, iniciação e por aí adiante. Tiram-se fotografias de ètutu, Orisá manifestados e demais awo. Isso é profanação, involução, destruição da religião; o jogo do inimigo. E ponto final (Santos.Maria Stella de A, 1995:22 apud Gonçalves;1998:199).
As etnografias realizadas por essa camada de intelectuais “de dentro” se tornam, então, um desafio: por um lado a tradição oral é considerada como elemento central do aprendizado religioso [9] por outro a produção escrita acaba representando um sinal de valorização positiva das representações e práticas do candomblé. Neste sentido tendem a demarcar a autoridade de suas mensagens. Essa camada religiosa de intelectuais busca empreender uma sistematização da doutrina, através também de iniciativas como a proposta das Conferências Mundiais da Tradição e Cultura dos Orixás, em 1983, do fim do sincretismo religioso [10], e nos recentes debates do Alaiandé Xirê (festival de música afro-religiosa), que reúne líderes dos candomblés do Brasil e de Cuba, acompanhado de seminários e feira, organizados nas dependências internas do Ilé Axé Opô Afonjá.
Vale salientar, também, a existência de uma literatura religiosa empenhada em fornecer uma série de informações religiosas básicas, a exemplo da revista Orixás que pode ser encontrada em qualquer banca das grandes cidades brasileiras. Trata-se de informações que buscam orientar o leitor em praticas mágicas, jogo de búzios e despachos.
Essa literatura tem as mais variadas fontes desde as fontes orais quanto escritas, sendo muitas vezes reproduções de trechos de etnografias, sem nenhuma referência bibliográfica, o que certamente requer uma atenção maior para novas pesquisas (Gonçalves; 1995:260).
Essa sistematização racional efetivada pelo corpo de sacerdotes intelectuais do candomblé, por um lado, cria laços de aliança e reciprocidade com os intelectuais acadêmicos [11], (Gonçalves;1998:202), por outro acaba criando uma nova luta concorrencial, agora pelo monopólio de falar de si, instaurando um conflito com os intelectuais acadêmicos, em alguns momentos velados, em outro aberto (como nos seminários promovidos pelo povo-de-santo, em que são feitas as críticas aos cientistas sociais).
Assim, os chamados “nativos” passam a questionar a voz autorizada dos pesquisadores, insurgindo-se contra a condição de meros colaboradores, informantes valorizados/privilegiados, tradutores do seu sistema cultural para o antropólogo. Os sacerdotes intelectuais acabam delineando novas linhas de ação no campo da pesquisa sobre as religiões afro-brasileiras, com a sua produção literária, sendo referência obrigatória nos novos estudos das religiões afro-brasileiras.
Muitos desses sacerdotes autores acusam alguns cientistas sociais de terem efetivado suas pesquisas sobre o candomblé para vantagem em benefício próprio, promovendo-se no meio acadêmico, e não proporcionando benefício algum as casas a que fizeram de laboratório, deturpando muito do que lhes foi informado, ou equivocando-se nas suas interpretações e muitas vezes revelando os segredos a que tiveram acesso [12].
Em suma, estes sacerdotes intelectuais dos candomblés baianos consolidam uma camada religiosa que repensa a tradição afro [13], exercendo uma liderança importante na mobilização contra a intolerância religiosa que o candomblé ainda vivencia, e contribuindo na sistematização da mensagem religiosa. Neste sentido, podemos dizer que o processo de sistematização do candomblé é o resultado de uma luta concorrencial no campo religioso, dando-se em parte como estratégia de defesa contra diversos concorrentes, tanto no âmbito interno (processo que desqualifica terreiros distantes do modelo dominante) quanto no âmbito externo (a exemplo das igrejas evangélicas e o catolicismo). Assim, embora a oralidade (Hampâté Ba;1982, Vansina; 1982, Leite;1986, Santos;1977) ainda seja norteadora dos modos de aprendizado e transmissão do saber, a produção escrita, na medida em que garante maior visibilidade ao candomblé, ou melhor, dos terreiros empenhados na sistematização do corpo místico e ritual é uma estratégia cada vez mais valorizada.
Estratégias de desqualificação e qualificação do campo afro-brasileiro.
O processo de consolidação do campo religioso afro-brasileiro envolveu uma série de disputas que se processaram e ainda se processam tanto a nível externo – entre as casas-de-santo – quanto a nível interno - entre os diferentes grupos de um terreiro. Essas disputas se cristalizam nas rivalidades entre os grupos de um terreiro que almejam a confiança do pai ou da mãe-de-santo, e são acirradas nas disputas pelos cargos honoríficos.
As rivalidades são muitas vezes marcadas por confrontos verbais entre seus pares, criando uma atitude desafiadora (Birman; 1995:99) cuja tônica é dada pela tentativa de comprovar que o outro (irmão-de-santo, ou , um indivíduo pertencente a outro terreiro) está “errado”, isto é, não está realizando os preceitos como reza a “tradição”, não atentando para o modo correto de agir, seja no uso de expressões adequadas, proferimento de formulas mágicas, conhecimento das cantigas, das folhas sagradas, etc.
Em suma, esses traços que são, constantemente, apontados nas acusações e ofensas, como “marmotagem” ou eke, acabam por delinear uma forma ideal típica a qual devem estar atentos os membros dos candomblés baianos de “olhos e ouvidos bem abertos” para não caírem nas “más língua”, na indaka de kafurungonga, nas “línguas-de-trapos”, que “falam pelos cotovelos”; o famoso ejó[14].
Braga assevera que através da fofoca é possível chegar às tramas mais complexas dos candomblés. Por um lado, à fofoca apresenta-se como condenação de certos comportamentos via insultos e ofensas gratuitas, chegando mesmo a gerar conflitos mais sérios, quando as acusações são de feiticeira. Desta forma constitui uma prática subliminar de preservação da tradição. Por outro lado, entretanto, os comentários jocosos são também forte indicativos das inovações processadas no âmbito religioso:
Na medida em que veicula e critica, na sua circunstância aparentemente negativa, aqueles acontecimentos que não deveriam ocorrer, posto que ferem ou se chocam com os preceitos da tradição estabelecida, o ejó termina sendo, de alguma forma, a crônica da novidade no espaço comunidade – terreiro, a própria etnografia da dinâmica que assinala as ocorrências que se afastam da tradição “fossilizada”, do que estava cristalizado como herança religiosa imutável e, assim, visualizado como indicador preciso da nova ordem que se estabelece ou que está em via de se estabelecer (Braga; 1998:25).
No candomblé o conhecimento é transmitido oralmente em estágios específicos para cada filho-de-santo. Estes conhecimentos, ou fundamentos, são o marco principal da diferença, delimitam o lugar do indivíduo na estrutura religiosa e sua distância frente a outros.
Desta forma, a competência é sempre reafirmada na acusação de que um certo agente religioso não tem autoridade, ou não tem domínio dos fundamentos, não é “um entendido nos preceitos”, nos saberes litúrgicos. Para que o indivíduo venha a deter o saber que marca o seu diferencial faz-se necessário à observância gradual dos preceitos em consonância com o grau que ocupa na estrutura religiosa.
A transgressão dessa regra religiosa pelo filho-de-santo que se esforça em dominar os segredos, antecipando, ou melhor, atropelando, o seu tempo de iniciação, estará ferindo as regras da estrutura dos candomblés e o insolente (afojudi) terá seu comportamento reprovado pelo povo-de-santo mais ligado às tradições. Argumenta Braga que esse comportamento ainda põe em risco a própria noção de poder vigente nos candomblés apoiada na idéia de “deter os fundamentos” (ibd;25). Tendo em vista que o conhecimento devera obedecer estágios iniciáticos e a ruptura destes estágios culmina com um conhecimento fragilizado, aprendido em casas cuja tradição difere, pois cada casas constrói as suas tradições. Da mesma forma, esse grupo de filhos-de-santo empenham-se no aprendizado ritual em livros, muitos escritos por sacerdotes, que acabam sendo uma fonte de obter informações, antes tido com toda gama de restrições, envolto em mistérios e segredos.
Ao buscar o entendimento do processo de consolidação dos candomblés baianos não se pode esquecer ou menosprezar as disputas internas a este universo religioso, pois estas constituem uma estratégia eficaz de demarcação de terreno na competição no mercado religioso, até mesmo em uma simples conversa entre alguns membros dos candomblés percebe-se às vezes um tom ameaçador.
Salienta Birman que esse tom ameaçador se constitui numa relação de desafio “onde poderá se instaurar um diferencial de competência que irá colocar numa relação de falta em relação a esse saber absoluto” (1995:100), travando desse modo uma luta simbólica que tem como finalidade uma elaboração diferencial da identidade.
A busca de uma dominação seja do tipo tradicional ou do tipo carismático (em termos weberianos) “nagocêntista” ganha contornos especiais nas rivalidades entre as casas-de-santo. Entre os expedientes reveladores dessas rivalidades estão as estratégias desenvolvidas por membros de alguns terreiros de candomblé para desqualificar as práticas dos terreiros concorrentes, ou com as habituais expressões faciais baianas de desprezo, ou descaso no assunto a exemplo do simples gesto em balançar a cabeça, como sinal de reprovação, da mesma maneira que “torcer os lábios para o canto”, “arregalar os olhos par cima” ou recorrendo no limite para a fofoca [15].
A luta simbólica travada historicamente no campo das religiões afro-brasileiras cristalizou, ou melhor, sedimentou, uma “hegemonia ‘nagô’, mesmo em relação a outros candomblés igualmente tradicionais e estruturalmente próximos as suas origens” (Braga 1995: 38).
Expediente eficaz são as críticas irônicas, ferozes, indiscretas e desmoralizantes, acionados pelo povo-de-santo, um tipo de zombamento conhecido como xoxação. Geralmente, as críticas ocorrem já no próprio espaço do terreiro em que esta se dando uma festa, nos arredores do barracão, ou nos bares que ficam próximos aos terreiros, (atrativos de uma grande clientela nos dias de festa). Birman (1995) observa que no candomblé não há quem não seja objeto de “xoxação” [16], qualquer atitude frente aos ritos pode ser criticada severamente, por não se adequar aos rígidos padrões idealmente concebidos. Por mais que todos efetivamente se cuidem para evitar os comentários maliciosos, estes acabam sendo inevitáveis, pois constituem um dos mecanismos básicos para a reprodução do diferencial constitutivo da identidade (ibd.:100).
Os alvos prediletos dos comentários jocosos são os pais, mães e filhos-de-santo chamados de “fura-rucô, aqueles indivíduos que mostram uma assiduidade nos candomblés da cidade, e que porventura acabam incorporando em seus terreiros práticas vistas em outras casas-de-santo (Braga; 1998). Estas incorporação de práticas no modos vivendos dos terreiros acabam por gerar tensões e disssenções na comunidade, haja visto que os filhos-de-santo mais velhos foram sociabilizados com um conjunto simbólico de representações e práticas que habituaram a partilhar. Assim, como forma reprovatória a inserção destas práticas surgem as diversas formas de agressões, por parte dos que se colocam como guardiões da tradição. Estas agressões varia desde aquelas consideradas enquanto simbólicas, as que ficam no campo da verbalização com toda gama de insultos, até mesmo aquelas que acabam por culminar em alguns casos nas agressões físicas.
Essas agressões simbólicas como “xoxação”, “sotaque” ou “desafio” ironia, brincadeiras maliciosas constituem-se como formas de construção da identidade no domínio da competência no campo das religiões afro-brasileiras. Destarte, na competição simbólica entre os terreiros existem formas consentidas de escapar desse jogo de acusações, muitas vezes cruel, a exemplo da alegação que fazem alguns sacerdotes mais novos, iniciados em casas menos reconhecidas, alvo predileto das acusações, de ter se filiado a um sacerdote tradicional, na busca da legitimação de suas representações e práticas.
É importantíssima, essa filiação. Eles não se iniciaram com esse pai ou mãe-de-santo, não entraram em reclusão nos terreiros destes para o aprendizado da gramática ritual, em muitos casos apenas “consertaram as suas obrigações” de um ano, três ou sete anos, ou apenas ofertaram obi às suas cabeças, isto é deram borí, comida a cabeça, de água ou sangue. Outros alegam que buscaram esses sacerdotes para fazer um “arremate”, acertar o que tinha sido feito “errado” pelo sacerdote anterior.[17]
Decerto, o candomblé sempre foi um espaço de relações de força entre terreiros cujo embate por vezes se expressa em termos de uma oposição às vezes velada e às vezes explicitas entre os guardiões da tradição, os detentores legítimos do saber sagrado, e os profanos da tradição, que passam a serem vistos como “charlatões”, “clandestinos”, “sincreticos”, “impuros”.
Porém, cada terreiro de candomblé, seja qual for a nação, keto, jeje, angola ou caboclo, assim como no passado valorizavam as suas tradições, acima de todas as outras nações proclamando a sua pureza. Segundo Bacelar (2001) apesar da existência de tensões e rivalidades entre os terreiros, uma oposição plena ou luta acirrada entre as casas nunca chegou a constituir traço característico do campo afro-baiano, haja vista o clima de simpatia e cordialidade que prepondera entre as casas de candomblé.
Acredito que essa cordialidade sempre existiu juntamente com as disputas. Não obstante, deve se atentar para o fato de que a solidariedade fica mais visível em terreiros que se constituem enquanto uma rede, pelo parentesco ritual, pelas disposições geográficas de pertencerem ao mesmo bairro, ou por uma afinidade calcada no grau da amizade entre sacerdotes.
Parto do suposto de que a não existência de uma maior solidariedade entre as casa-de-santo (apesar do apelo do povo-de-santo pela união em defesa das religiões afro-brasileiras, veiculado nos jornais das federações e entidades religiosas, assim como nos congressos promovidos pelos líderes de terreiros juntamente com seus “representantes” da academia) se deva ao fato de que na ausência de uma estrutura formal centralizada ligando entre si os vários terreiros, estes mesmo atendendo as etiquetas da hierarquia religiosa de prestar homenagem às casas mais antigas, passam a concorrer entre si pelo monopólio dos bens do sagrado. Nessa disputa o discurso da tradição aparece como um capital para demarcação de poder no mercado concorrencial dos bens simbólicos.
Cabe observar, contudo, que essa é uma tradição reinterpretada; os ritos e mitos, muitas vezes perderam sua originalidade e aqui foram resimbolizados, assim tal como a língua ritual dos cânticos, rezas e formulas mágicas, “identificável na sua estrutura e no seu léxico, mas certamente modificada em seus valores semânticos e fonéticos” (Costa Lima;1977:10).
As interpretações ocorridas dentro dos terreiros de candomblé não inviabilizaram o processo de redescoberta da África e africanização dos cultos, com a ida de sacerdotes ao continente africano, que traziam de lá, as especiarias, como inhame, corais, laguidibá, pano-da-costa, além de novas formulas mágicas, cânticos rezas, orikis.
As idas e vindas de Martiniano a Lagos, na Nigéria o levaram a entronização no corpo dos Obá de Xangô do candomblé do São Gonçalo, o Axé Opô Afonjá, e segundo Braga eram um “sinal inequívoco do quanto já significava, naquela época, a reafricanização ou, melhor dizendo, a ‘renagoização’ desses terreiros” (Braga;1995:48).
A busca da fidelidade da África, dos pedaços de tradição que são considerados perdidos ou esquecidos (Gonçalves;1999:152) já estava presente na dinâmica das casas tradicionais do candomblé baiano, desde o início do século XX, com a ida a África de figuras importantes do meio afro-baiano como Martiniano Eliseu do Bonfim e a segunda Iyalorixá do terreiro da Casa Branca Obá Tossi e do Pai Adão, famoso babalorixá do Xangô de Pernambuco.
No eixo Rio de Janeiro/São Paulo o empreendimento de busca a uma África qualificada, [18] produtora de bens simbólicos, foi levado a cabo nas duas últimas décadas do século passado passando a conferir maior prestígio que a viagem à Bahia[19], considerada no eixo sudeste como centro da tradição afro-brasileira.
Então, muitos sacerdotes, sulistas e alguns baianos, partiram em destino a Nigéria e ao Benim, no afã de conhecer mais sobre os Orixás. Teve forte influência neste processo de redescoberta da África a leitura dos livros de Verger que se transformaram em “best-seller” entre uma camada do povo-de-santo (especialmente o seu clássico Orixás editado pela Corrupio em 1981). Ao receber estudiosos africanos no Brasil, Verger também facilitava os contatos destes como o povo-de-santo.
Segundo Braga também deve ser levado em conta no processo da reafricanização ou, nos seus termos, “nagoização” o papel e o compromisso do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, criado por Agostinho da Silva em 1959. A partir da década de 60, o CEAO passou a desenvolver uma série de atividades numa perspectiva de aproximação cultural entre o Brasil e África, principalmente os curso de língua e cultura Iorubá (Braga;1995:49). A implantação do CEAO representou a efetivação da proposta antecipadora de Édson Carneiro, que na década 1920, vislumbrava a criação de um Instituto Afro-Brasileiro na Bahia.
O CEAO realizou obras que iam ao encontro às aspirações dos segmentos intelectualizados dos candomblés baianos (Risério;1995:58-9).A principal iniciativa do centro veio a ser a implantação do curso de língua Iorubá implantado, atendendo aos interesses dos congregados dos candomblés" e ao desejo, que tinha de reforçar os tênues laços diretos que conservaram com a África"( ibd;59).
Ministrado pelo professor nigeriano, Lasebikan, foi freqüentado em sua maioria por gente-de-santo, pessoas ligadas ao candomblé que “certamente redefiniram muitos dos seus conhecimentos a partir da aprendizagem de uma língua que, na sua dimensão arcaizante e sagrada, é utilizada no cotidiano de suas práticas religiosas.” (ibd;1995:49).
Além do curso de ioruba o CEAO incrementou um intenso contato com a comunidade negra, em especial com o povo-de-santo, através de cursos de kikongo, de história e cultura dos afro-brasileiros e dos povos africanos (Bacelar; 2001:135)[20].
Do mesmo modo, o CEAO possibilitou o intercâmbio Brasil - África em esfera oficial. Nesse empenho um grupo de pesquisadores tomou rumo à Nigéria. Risério acredita que o sonho de Martiniano-Ojeladê de incrementar os contatos entre Brasil e África teria sido contemplado com essa viagem de pesquisadores, estudantes e professores no anseio de aprofundar os conhecimentos sobre o continente africano.
Em suma, as recriações e reinvenções das tradições dos terreiros de candomblé, também obedeceram às estruturas econômicas da sociedade dividida em classes a qual estavam inseridos.
Mesmo nos candomblés mais ortodoxos e ostensivamente zelosos de suas origens africanas, as mudanças foram inevitáveis, não deixando de existir, “factual e nítido, o processo das modificações estruturais causadas pelas acomodações situacionais; pela diminuição ou mesmo supressão de algumas prescrições rituais, sobretudo aquelas referentes à duração de período de reclusão ritual e interdito comportamentais e por vários outros fatores de ordem sócio-econômica” (Costa Lima; 1977:11) O tempo de reclusão iniciática, conventual, foi diminuído em razão das pressões econômicas fazendo atenuar o rigor da norma introdutória na vida secular do neófito[21].
Seria a presença da África qualificada na manipulação de traços genéricos, em maior ou menor grau que definiria os cultos afro-brasileiros relacionados à noção de tradicionalidade. Foi em nome dessa tradição originária que fez com que a visibilidade desses cultos tidos como ilegítimos e misturados, fossem ofuscados esquecidos por uma tradição de cientistas sociais.
A geração de intelectuais que iniciaram suas pesquisas nos anos 70, levou a sério não somente a denuncia desse compromisso, vindo a colaborar na defesa dos cultos excluídos, aqueles sincreticos (Birman;1997:82), os que criam novas tradições com o Terreiro de Pai Beto de Oxalá que cada vez mais se empenha em adaptar seu terreiro às exigências do mundo moderno.
Em uma das festas em que estive presente, com um grupo de alunos do curso de formação de guias de turismo, o terreiro contava com um recurso sonoro inovador para uma casa-de-santo que se classifica como nagô tradicional na Bahia: ao lado dos atabaques encontrava-se uma caixa de som amplificada e um microfone que era revezado pelo grupo de solista. Assim acabo concordando com Hobesbawn que “toda tradição é uma invenção”, que visa a atender a estruturas estruturadas e estruturantes do diversos poderes simbólicos como diria Pierre Bourdieu.
Reinvenção da tradição
Pela categoria de tradição entende-se um conjunto de sistemas simbólicos que são passados de geração a geração, que tem um carater repetitivo. Repetição significa atualização dos esquemas de vida. Em outros termos, pode-se dizer que a tradição é uma orientação para o passado, de modo que o passado tem uma significativa força e influência sobre o curso das ações presentes. A tradição também se reporta ao futuro, ou melhor como organizar o mundo para o tempo futuro.
Segundo Weber (1991:148) uma das formas de dominação em uma sociedade é calcada na tradição, a crença na santidade das ordens e dos poderes existentes desde sempre, cujo conteúdo não se tem à possibilidade de alterar, funcionando como o cimento que une as ordens sociais. Porém, salienta Sahlins (1987), os sistemas simbólicos não devem ser pensados como estáticos, e sim dinâmicos, atendendo ao curso da história para se reproduzirem. Conclui que “as coisas devem preservar alguma identidade ou o mundo seria um hospício” (1987:190). Desse modo, em toda mudança vê-se também a persistência da substância antiga: a desconsideração que se tem pelo passado é apenas relativa. É por esta razão que o princípio da mudança se baseia no princípio da continuidade (Sahlins, 1987:190).
Assim, devemos entender a categoria tradição com um campo que envolve um ritual, o que confere o status de integridade, como um meio prático de garantir a preservação calcado em modelos que podem ser histórias míticas, reais e reinventadas, dando conta dos múltiplos processos de resemantização e de ressimbolização no curso da historia dos atores sociais. Em suma, a tradição passa a ter um carater normativo, relacionados aos processos interpretativos por meio do qual o passado e o presente são conectado para ajustar o futuro. Desse modo, a tradição passa a representar não apenas o que é feito numa sociedade, mais o que deve ser feito no próprio processo de mudança Como observa o historiador Eric Hobsbawn: “toda tradição é uma invenção”, que surgiu em algum lugar do passado podendo ser alterada em algum lugar do futuro.
As tradições estão sempre mudando “mas há algo em relação à noção de tradição que pressupõe persistência; se é tradicional, uma crença ou prática tem uma integridade e continuidade que resistem aos contratempos e as mudanças. Desta maneira as tradições tendem a ter um carater orgânico: se desenvolvendo e amadurecendo, ou enfraquecendo e “morrendo”. Por isso, os agentes sociais “os guariães” os mediadores do sagrado realçam constantemente os elementos constitutivos da tradição: a integridade, ou a autenticidade assegura Giddens, entretanto observa Sahlins que:
Para compreendermos os movimentos culturalistas contemporâneos, as lições da sabedoria boasina tradicional poderiam ser tomadas da seguinte forma: a defesa de uma tradição implica alguma consciência, consciência da tradição implica alguma invenção, a invenção da tradição implica alguma tradição ( Sahlins apud Birman, 1997: 89).
Entrementes, não foi enquanto invenção que a categoria nativa de tradição se cristalizou e naturalizou no campo acadêmico do inicio do século XX, mas sim em termos de uma cultura inerte ao tempo, não dando conta da historicidade, da posição dos sujeitos na estrutura do campo religioso e da subjetividade desses atores.
Assim, faz-se necessário observar que os conceitos e categorias são produzidos pelos atores sociais, para atender as expectativas de suas próprias ações e a necessidades de relações significativas em suas vidas. Logo, no campo do candomblé os sacerdotes mais atávicos as suas tradições originárias não reconheciam como legítimos os cultos misturados, acentuando como legitimo os candomblés Keto.
O debate da tradição versos invenção
Na década de 60 do século XX, inicia-se um largo processo migratório do Nordeste para as grandes áreas industrializadas no Sudeste do país. Com isso, migram alguns sacerdotes baianos da tradição dos candomblés que passam a empreender suas marcas nestas cidades.
Prandi parte do suposto de que o candomblé começou a penetrar no bem estabelecido território da umbanda, e vários sacerdotes umbandistas passaram a se iniciar no candomblé. Acentua este autor que neste momento da história brasileira, as classes médias urbanas buscavam traços culturais que poderiam ser tomado como as raízes originais da cultura brasileira. Desse modo, intelectuais, estudantes, artistas participavam dessa empreitada, que tantas vezes foi bater à porta das velhas casas-de-candomblé da Bahia (Prandi; 1996:16).
Na Bahia, como já descrito antes, os candomblés, cada vez mais, almejavam ao ideal de pureza de suas nações, severamente exigidos pelos sacerdotes, desde o tempo de Martiniano, Mãe Menininha do Gantois, ainda uma nova Iyalorixá, no tempo em que concedeu entrevistas a Ruth Landes (Pierson; 1971 Landes; 1967). Ambos endereçavam as suas críticas especificamente para os sacerdotes que introduziam na prática religiosa o culto dos Caboclos, e os cultos de liderança masculina, salvaguarda de dois pais-de-santo amigos de Menininha, a quem essa mostrava respeito, mas ambos eram fervorosos na defesa do matriarcado como um sinal diacrítico da tradição dos candomblés nagô.
Birman, no seu livro Fazer Estilo criando Gênero (1995), parte do suposto de que a liderança feminina nos cultos afro-brasileiros expressa uma fidelidade à tradição, revestindo de um minucioso esmero o culto dos Orixás e contrastando em relação a alguns terreiros liderados por pai-de-santo. Birman acredita que os terreiros
Dirigidos por homens apresenta uma “abertura” para fora mais evidente: as festas incluem um número maior de pessoas estranhas ao cotidiano da casa, há um caráter mais “mundano” nas atividades: o luxo, as fofocas, o clima geral é de um acontecimento altamente excitante e envolvente. Terreiros dirigidos por mulheres são mais fechados: o seu núcleo defende-se da “poluição” que vem de fora, há uma ênfase nas fronteiras da casa e na exigência de fidelidade de seus participantes (1995: 56).
No limite, faz-se preciso relativizar, com muito cuidado, essas afirmações de Birman quando se trata da Bahia, no máximo podendo tais afirmações ser validas para o eixo Rio/São Paulo. É sabido da fama de pais-de-santo que mantém a tradição aos Orixás com a mesma fidelidade dos seus ancestrais.
Entretanto, sabe-se também que em muitas casas lideradas por homens estão presentes tanto a mundanidade (as fofocas, o luxo, o sexo) quanto a moralidade da face feminina, que também não escapa do mesmo jogo mundano dos candomblés masculinos. A questão de gênero não pode ser o definidora da tradição, pois acabaria por ter a mesma visão etnocêntrica dos velhos sacerdotes, para a cristalização de um ethos ideal.
Como já dito anteriormente, a antropóloga Beatriz Dantas assevera que essa construção ideal típica jeje-nagô teve grande influência dos intelectuais que realizaram as suas pesquisas nas casas-de-santo tradicionais baianas da nação Keto, calcada no matriarcado. A idéia de pureza foi, portanto, idealizada pelos pesquisadores concomitantemente com a idéia de tradição, e relacionada com a história de cada casa-de-santo na preservação dos costumes e valores dos ancestrais africanos.
A noção de pureza dos cultos afro-brasileiros é facilmente reconhecível nas analises da literatura antropológica, desde o inicio do século XX até a década de setenta. Os intelectuais buscaram uma correspondência entre a valorização da tradição africana e a valorização de uma tradição anti-sincretica, “pura”, que remetia a uma perspectiva intelectual de pensar o afro-brasileiro, quanto a uma prática religiosa mantidas pelas casas-de-santo tradicionais na Bahia. Em nome de uma tradição originária não se reconhecia como legítimos os cultos misturados.
Por sua vez, a geração de intelectuais que iniciou seus trabalhos nos anos 70, deste mesmo século, levou a sério não somente a denuncia desse compromisso, como também veio a colaborar no sentido de defender os cultos excluídos, aqueles supostos sincréticos (Birman; 1995 :82).
Desta forma, inaugura-se uma analise mais atenta para as transformações das religiões afro-brasileiras, identificando uma nova morfologia social dos terreiros de candomblé. Os cultos populares antes desprezados pela tradição intelectual ganham um “lugar ao sol”, assim como outras vertentes das religiões afro-brasileiras, tais quais a umbanda, as casas-de-santo da nação Angola. Isto se deu na tentativa de entender melhor o fenômeno do sincretismo e o caráter dinâmico da cultura ao reinventar a tradição.
Na cidade de Salvador é significativo o número de novas casas-de-santo de outras vertentes não tão próximas do modelo ideal “purista”, e das casas consideradas tradicionais que, aos poucos, foram se mostrando “abertas” para dialogar com a diversidade de práticas magicas ofertadas no mercado religioso.
O crescimento de um corpo de especialistas do candomblé se dá devido ao fato como de que o exercício de
sacerdote qualificado no candomblé representa a possibilidade de exercer uma profissão que, nascida como ocupação voltada para os estratos baixos de origem negra, passou recentemente, a compor os quadros dos serviços de oferta generalizada a todos os segmentos sociais, a reivindicar o status de uma profissão de classe média (Prandi;1996 :36).
Muitos dos novos sacerdotes não passam pela iniciação, operador de distinção que, a rigor, classifica os indivíduos como pertencentes à religião dos Orixás. Outros ainda não completaram as obrigações prescritas de um, três e sete anos, especialmente esta última, que finaliza o processo iniciático ou, como é mais conhecido, não tomou o deká[22], termo advindo da nação Angola e, adaptado a outras nações, concernente ao recebimento do cargo de mãe ou pai-de-santo [23].
Esses líderes são classificados pelo povo-de-santo, desde a época das pesquisas de Bastide na década de quarenta do século XX, como improvisados clandestinos, feitos dos pés para a cabeça, pais e mães-de-santo de eke.
Os sacerdotes “clandestinos” se valem, para explicar sua falta de iniciação religiosa formal, de clichês racionalizados da sua deficiência, dos quais o mais comum é dizerem que “foram feitos de berço” ou de “nascença”, isto é; nasceram feitos. Observa Costa Lima (1999) que a expressão talvez seja mais empregada porque em sua ambigüidade pode fazer com que se julgue que a mãe ou o pai-de-santo “feito de berço”, ou de “nascença”, tenha nascido na camarinha, durante a iniciação, considerando-se estes como àbikú [24] (Costa Lima; 1999: 52)[25].
Essas reinvenções de tradições afro-brasileiras estão diretamente ligadas ao dinamismo cultural da sociedade moderna, que expõe seus produtos no hipermercado dos bens simbólicos. Mesmo reinventada a tradição acaba funcionando como ingrediente necessário no discurso desses novos sacerdotes das religiões afro-brasileiros.
Esses candomblés classificados por mim de “modernos”, no sentido de terem se instalados e consolidados recentemente em relação àqueles tradicionais, os mais antigos, buscam selecionar determinados sinais diacríticos de pureza (autenticidade, filiação a um terreiro tradicional) para funcionar como demarcadores de uma tradição, que a todo instante é reivindicada para aceitação no mercado religioso.
Outra mudança recorrente nesses terreiros “modernos” é a troca da nação, do modelo Angola para o Keto, e nunca ao contrário, sendo este um expediente eficaz para alguns dos sacerdotes, que buscam espaço no mercado religioso. As mudanças levam ao abandono de elementos da tradição iniciada, em favor da outra mais valorizada no campo religioso
Prandi (1991) constatou em suas pesquisas sobre os candomblés que as constantes mudanças dos sacerdotes:
são de iniciativa e arbítrio do pai ou mãe-de-santo, que, contudo, estrategicamente, sempre afirmará tratar-se de desígnio do Orixá, que mostra seu desejo através do jogo de búzios, o qual só pode ser jogado e interpretado exatamente pelo pai ou mãe-de-santo, o chefe da casa (Prandi;1991:110).
As migrações racionalizadas ocorrem ainda no plano da filiação. Existem filhos-de-santo que ao se desentenderem com seus iniciadores buscam completar ou terminar as obrigações rituais com outros pais e mães-de-santo. Alegam varias razões para sua transferência, podendo ser o caso de seus Orixás terem sido iniciados na nação errada, ou, mesmo, terem feito o santo errado. Alguns, nesta estratégia de legitimação, buscam líderes que dispõem de um carisma no mercado religioso, uma visibilidade na mídia ou, até mesmo, por uma afinidade com o sacerdote escolhido.
Alguns dos novos líderes que migram de um terreiro a outro, de nação a outra, em muitos casos se mostram abertos para o diálogo com outras práticas, advindas do esoterismo, da cabala e da própria umbanda. Rituais, tido no tipo ideal jeje-nagô como depurados, são realizados em suas casas, particularmente as sessões de giro de Exu[26].
Considerações Finais
É significativo atentar para o fato de, atualmente, existir um conflito entre os sistemas de crenças afro-brasileiros, que vem sendo postulado na concorrência dos bens simbólicos. Assim, pais e mães-de-santo procuram uma incessante legitimidade, referindo sempre na genealogia de seus terreiros alguma ligação com os terreiros tradicionais ou refiliações com líderes de grande reconhecimento pela sociedade exterior à religião. Os mecanismos de legitimação de alguns desses terreiros envolviam e continuam a envolver a adoção de ebômis das casas importantes que assumem papel de prestígio na hierarquia da casa (Costa Lima;1987:42), garantindo um atestado de competência e legitimidade nos conhecimentos, detentores de "fundamentos"; distância que os separam dos outros. A competência e o conhecimento se somam um conjunto de estratégias articuladas pelos pais e mães-de-santo que lhes confere reconhecimento.
Tendo em vista que na atual sociedade brasileira a eficácia e a competência são os indicadores importantes para adesão dos indivíduos a uma agência religiosa, seja a um terreiro de candomblé, ou a uma igreja neo-petencostal. Os indivíduos, atualmente, apegam-se na promessa e na possibilidade de administrar o seu próprio destino, co-existindo sempre a crença de alcançar respostas significativas para os acontecimentos adversos apresentados na vida cotidiana, vendo, assim, na competência explicitada, por diversos canais de divulgação, do sacerdote das religiões afro-brasileiras a possibilidade de encantar o mundo, torná-lo mágico e desse modo, compreende-lo, aceitá-lo, ajustá-lo as normas impostas pelos infortúnios, apresentados na vida cotidiana, estabelecendo uma relação de casualidade dos problemas apontados a uma dimensão mágica, recorrendo, no limite, aos auxílio de profissionais com agências qualificadas, que travam uma luta concorrencial no mercado dos bens simbólico, na busca de uma grande demanda de clientes e fiéis.
No cenário atual da nossa sociedade o cálculo, a probabilidade e previsibilidade são formas de enfrentamento do indivíduo com o seu ( mal) estar no mundo. Os indivíduos são conduzidos a racionalizarem as suas vidas pelas ofertas expostas nos balcões do mercado religioso, um mosaico de formulas mágicas, de doutrinas esotéricas, de medicinas paralelas, de psicanalismo e todo um amplo receituário de modos de vida e superação dos obstáculos, intervindo a um favorável desfecho.
Assim elabora-se um cenário, re-encantando o mundo, racionalizando um repertório de signos disponível e eficaz, no intuito de garantir e prover ideologicamente os indivíduos a uma segurança psicológica e re-elaborar suas identidades, possibilitando a manifestação dos “eus” contidos e reprimidos nas sociedades modernas. Nessa trama simbólica almeja-se metáforas e arquétipos satisfatórios ( signo astrologico e ancestralidade mítica ) capazes de prover aos indivíduos a alteridade para pensar a si próprio.
No Brasil, em particular na Bahia, os indivíduos racionalizam suas condutas recorrendo muitas vezes a recursos religiosos e eficazes, desta maneira as religiões afro-brasileiras, promotora tanto de uma auto-identidade, quanto uma identidade comunitária, na eficácia dos métodos e o discurso da tradição produtor de legitimidade. Desta maneira, na atualidade o candomblé passou a compor ao elenco de oportunidade de enfrentamento do mundo ao mesmo tempo passou a ser mercadoria das camadas economicamente privilegiada (branca) e objeto de análise (desde do início deste século) dos antropólogos, sociólogos, historiadores e psicólogos, os signos religiosos tornaram objetos exóticos pelos órgãos de turismo e cultura do estado da Bahia e da cidade de Salvador.
É justamente nesse cenário de busca pelo exótico, pelo encantamento do mundo, que emergem novos lideres religiosos que prenunciam em sua careira sacerdotal a possibilidade de ascensão, tendo em vista que cada vez mais na sociedade brasileira se aceita o feiticeiro e sua magia, abrindo desta forma canais de divulgação em emissoras de TV e espaços específicos em shopping center, para prestação de serviços. Com este prestigio e reconhecimento esses lideres “modernos” e “ecléticos” ingressam na competição do mercado de trabalho por deter uma competência real ou atribuída pela agência formadora. ( Prandi; 1993:106)
Em suma, no novo contexto dos candomblés baianos, não é apenas o ideário normativo da tradição do modelo jeje-nagô que assegura a legitimidade aos pais e mães-de-santo entre o povo-de-santo, o que esta em jogo é a competência no campo religioso do pai e mãe-de-santo frente às expectativas coletivas que almejam encantar as suas vidas. Isto é; esperam uma operacionalização do campo sagrado para atender as aflições e tormentos apresentados no dia-dia. Outro ponto destacado entre o povo-de-santo que funciona como um demarcador de legitimidade é o poder carismático do sacerdote, o domínio de uma linguagem que agrega em torno de si os seus fiéis e uma vasta clientela “carismaticamente dominados” (Weber, 1994, 154) e a divulgação de suas qualidades especiais na manipulação do mundo mágico.
Durkheim (1989) aponta para o fato de que os clientes não fazem parte da religião, por não se constituírem como base efetiva da “comunidade moral” (a igreja), tendo apenas uma relação utilitarista com serviços prestados pelos sacerdotes, entretanto, numa perspectiva weberiana, mesmo a clientela sendo fugaz, ela tende a reforçar o poder do sacerdote, enquanto um burocrata, no cumprimento de modo satisfatório de suas funções. Assim, a clientela torna-se, então, objeto de influência decisiva na legitimação do sacerdote, que tende a sistematizar as suas formulações mágicas, o seu conhecimento e sua eficácia nos tratamentos de aflições e tormentos apresentados (Weber;1994:319).
Os pais e mães-de-santo nesse “caleidoscópio” do mundo moderno se viram obrigados a racionalizam as suas práticas; o jogo de búzios, as consultas privativas, ou os ebós aos seus clientes que cumprem uma função importante para o candomblé como religião. Não obstante, incide Prandi que a clientela procura o candomblé pelos serviços mágicos ofertados, no encantamento desse mundo através dos ritos sacrificiais. A constante procura pelos serviços das religiões afro-brasileiras se dá no afã, na curiosidade dos indivíduos saberem qual o seu “Orixá de cabeça”, ou na busca de uma resolução imediata das aflições, privações e incertezas. Essa clientela não é diferente das que procuram “kardecismo, pentecostalismo, umbanda a depender da classe social psicanálise e outras modalidades terapêuticas” (Prandi; 1993: 26-7).
Nesse hipermercado, ou melhor nesse mosaico de bens religiosos são inúmeros os pais e mães-de-santo apontados pelo povo-de-santo baiano, como grandes provedores de "axé", pelas suas competências explicitadas na eficiência dos serviços prestados pelas suas divindades os Caboclos, Exus e Pomba Gira a clientela. Sendo assim, os pais e mães-de-santo dos candomblés que se mostram com uma abertura para socializar o “Outro”, nesse caso o Outro são as representações e práticas umbandistas, particularmente, o culto dos Exus abrasileirados. Esses modelos de candomblés distante do ideal normativo das casas ortodoxas respondem às expectativas da clientela, que sem um cálculo mecânico ajustam-se de imediato às exigências inscritas no mercado religioso, como já dito na resolução das aflições e tormentos dos fieis, saúde, problemas financeiros e questões amorosas. Em suma, os pais e mães-de-santo "ecléticos", "modernos" garantem nas suas agências religiosas a legitimidade, tirando proveito do capital simbólico de reconhecimento frente aos devotos assim como a toda sociedade.
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[1] A obra de Ruth Landes, Cidade das Mulheres, cuja abordagem é a vida dos candomblés baianos da década de trinta, do século XX, e o destacado papel das mulheres negras dentro dos terreiros e na vida fora deles. O livro permaneceu por algumas décadas empoeirado nas estantes, ficando apenas circulando entre os leitores especializados nos estudos afro-brasileiros, mesmo assim visto com uma certa complacência. Não obstante, o livro era apresentado como uma reminiscência de sua passagem pelo Brasil do que propriamente o resultado de sua pesquisa. O livro recebeu pouca atenção favorável saindo logo de circulação, contrariamente a outros trabalhos de autores estrangeiros (Fraizer, Melville Herskovits, Donald Pierson), que estiveram no país neste mesmo período. Foi com a publicação da segunda edição de Cidade das Mulheres, em 1996, nos Estados Unidos, que o livro começou a recapturar atenção acadêmica, pelas antropólogas feministas norte-americanas que passavam a rever a história da antropologia, despertando um interesse sobre a ótica das relações entre gênero e raça. Uma das razões pela qual seu livro foi excluído dos circuitos acadêmicos. Landes foi vitima de uma perseguição masculina a uma mulher que tinha a pretensão de afirmar existir uma cidade das mulheres num mundo dos homens. Landes acabou por ingressar num campo já minado por dissensões políticas e metodológicas. Segundo Corrêa, as críticas de Artur Ramos quanto às de Melville Heskovits se assentam em três pontos; o primeiro pelo fato já mencionado o seu ingresso num campo objetivado pelos homens, ao passo que mantinha uma relação amorosa com seu colaborador Edson Carneiro[1], segundo a sua ênfase nas relações raciais, num momento que se enfatizava as explicações dos fenômenos sociais por explicações culturais, terceiro “por sua descrição, destoante das descrições canônicas, a respeito que as mulheres tinham no candomblé”[1]. Segundo Healey, a resistência que Landes encontrou se assentava na questão de gênero: primeiro a resistência que ela havia encontrado para realizar a pesquisa de campo e depois para publicar seu trabalho.
[2] Segundo Édson Carneiro, em seu tempo, nas cassas tradicionais do modelo Keto, era possível “ver cantar e dançar para os encantados Caboclos” (1961:62).
[3] Alguns autores, como Carneiro afirmam ter presenciado cânticos e danças aos caboclos nos terreiros do Engenho Velho e Gantois (1978:54). Alejandro. Frigerio (1983) citado por Teles dos Santos (1995) afirma a existência do culto de Caboclos no Axé Opô Afonjá embora na forma de um culto privado. Tomei como surpresa essa informação por ter um contato com esse terreiro. Sabemos que em uma das festas ao Orixá Oxossi há a presença de muitas frutas, talvez o fato de Oxossi ser o dono das matas, habitat dos caboclos e a presença de frutas levou ao pesquisador identificar equivocadamente a festa como um ritual de Caboclo.
[4] Teles (1995), se preocupou em analisar o culto dos excluídos Caboclos pela ortodoxia do povo-de-santo como pelos intelectuais que sempre privilegiaram as casas nagôs. Teles dos Santos postula que nos dias atuais existe um reconhecimento da importância dos Caboclos nos candomblés baianos pelos pais e mães-de-santo dos terreiros ortodoxos, que não mais fazem as severas críticas como nos tempos de outrora, à presença do Caboclo no candomblé nagô, entretanto, insistem sobre a pureza de suas casas. (Teles dos Santos, 1995:23).
[5] Sobre a vida do professor e Babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim, Ojelade ver Costa Lima, Vivaldo. O candomblé da Bahia na década de trinta. In: Oliveira, Waldir Freitas de & Costa Lima (orgs.). Cartas de Edson Carneiro a Arthur Ramos: de 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. São Paulo: Corrupio, 1987. Ver também Braga, Júlio. Na gamela do feitiço. Salvador. Edufba. 1995.
[6]A CONTOC foi um movimento organizado por lideranças religiosas da África dos Estados Unidos, do Caribe e da América do Sul, cujos objetivos era a unificação da tradição dos Orixás. Sendo realizado a primeira em Ilé-Ifé, na Nigéria, a Segunda no Brasil, a terceira em Nova York e outra em Ilé Ifé, ambas em 1986. Em 1987 ocorreu no Ilé Axé Opô Afonjá o preparatória para a Quarta, no qual se criou o INTECAB (Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-Brasileira) e a quarta ocorreu em Nova York em 1988 e 1990 em São Paulo ( Gonçalves;1995:269).
[7] Rodrigué nos informa que o acarajé comida de Oyá-Iansã, rainha dos ventos e dos movimentos rápidos, representa os filhos gerados por ela e não criados, mãe dos mortos, mãe de Egungun. “Fala do feto ainda em estado de formação, ainda envolvido no sangue” (Rodrigué;2001:96)
[8] Os seus livros são Meu tempo é agora, Dai aconteceu o encanto esse último em co-autoria com sua filha-de-santo Cléo Martins- Agbeni Xãngô. Cléo Martins organizou o livro comemorativo dos sessenta anos de iniciação de Mãe Stella, Faraimará - O caçador traz alegria (1999) e publicou os livros Ewa: Senhora das Possibilidades (2001), Iroco: O Orixá da Árvore e a Árvore do Orixá (2002).
[9]A transmissão do saber no candomblé obedece à lógica da palavra falada, “boca ouvida” , nos momentos específicos a cada filho-de-santo. A palavra por si só é detentora de força vital, o axé. O conhecimento é veiculado na observação sistemática e nunca na lógica de perguntas e respostas, é preciso estar atento a tudo, e nunca perguntar mas esperar que venha lhe explicar. A oralidade constitui um universo concreto revelador das principais proposições históricas de uma dada comunidade de terreiro, capaz de explicar a organização do mundo e da realidade, bem como, práticas sociais globais, a captação, exercício, acúmulo, e transmissão do conhecimento, segundo valores civilizatórios próprios nascidos de sua identidade profunda. Assim, cada evento decisivo na comunidade de terreiro de candomblé e nela perpetuado sob a forma de valor decisivo constitui o som de uma palavra cantada ou proferida “boca ouvida” nos estágios de iniciação e na vida cotidiana dentro do terreiro. Designa-se dessa forma sob o termo geral da palavra proferida ou cantada o conjunto de forças vitais existentes e que a explica no tempo e no espaço. Diante desses pressupostos, é de se considerar que a oralidade com a utilização da voz com maior ou menor freqüência de vez que não é rara a pausa, o silêncio, adquire um grande significado dentro da estrutura candomblé. A suposição é de que a oralidade pode exercer uma influência sobre o alvo de sua atenção o qual, por sua vez possuiria sua própria palavra ou energia vital e reagiria diante dela. É um processo dinâmico, portanto, que supõe interação (Leite; 1986).
[10]Postura assumida e mantida isoladamente pela Iyalorixá Stella Azevedo, entre as outras signatárias Iyalorixás que assinaram o documento (Consorte;1999).
[11]Esse dialogo entre antropólogos e acadêmicos, mediado pela escrita, tem possibilitado muitos sacerdotes na participação efetiva nas pesquisas etnográficas sobre o candomblé, seja na elaboração de prefácios, ou na avaliação que faz o sacerdote, para autorizar o uso de determinadas informações. Na minha pesquisa sobre o Orixá Exu submeti o texto final tanto ao Pai Beto quanto a minha Iyalorixá, para ambos fazerem correções de certas informações que pudessem vir a ser consideradas como awô (segredo), assim como opinarem em certas alterações. Sobre esse assunto ver Gonçalves que dedica um capitulo de sua tese o Antropólogo e sua magia (2000) a essa temática.
[12]Neste debate Gonçalves (1998) parte do suposto que cada grupo tem uma noção diferente do que seja o retorno, muitas vezes pode ser adesão do antropólogo a casa, para outros pode ser a contribuição financeira, a divulgação do terreiro ou a participação nos projetos sociais e políticos do grupo (ibd;55)
[13]Nesse sentido, surgem outras formas de sistematização racional do candomblé para se auto-representar, a exemplo da criação do CEPTOB (Centro de Estudo e Pesquisas das Tradições de Origem Banto) pelo Tata de Inquice, Laércio Sacramento, cuja finalidade do centro é resgatar e difundir a tradição banto, desvalorizadas pelo domínio nagô. Propõe o pai-de-santo uma reação ao “nagocentrismo”. Fato curioso foi à celebração do sacramento do casamento aos moldes de uma tradição criada em seu terreiro Manso Kilembekweta Lemba Furaman, em Jauá, na Estrada do Coco, no dia sete de novembro de dois mil e hum (nas palavras do pai-de-santo “o adepto do candomblé , tem de procurar o templo de sua própria religião para se batizar, casar ...”[13]). Surgiu, também, em Salvador o ACBANTU – Associação Cultural e Preservação do Patrimônio Bantu-, cujo objetivo é o estudo e transmissão da cultura bantofone, através de oficinas, palestras tanto nos terreiros de candomblé, quanto nos espaços acadêmicos Essa temática da reação “nativa” ao nagocentrismo criando por sua vez um bantocentrismo, certamente requererá uma analise mais detalhada no futuro.
[14] O povo-de-santo vive, a todo instante, vigilante para não caírem no ejó, a fofoca, ou como prefere Braga a “crônica da novidade”. Eles se esforçam como dizem: “para não terem os seus nomes na bandeira de Tempo”. Referem-se a bandeira branca que nos candomblés da nação Angola tem como emblema do Inkisse Tempo. Geralmente, a bandeira é colocada numa vara de madeira bastante grande que a qualquer distância possa identificar que ali é um terreiro de candomblé.
[15] Sobre o assunto: Ver Braga (1998: 25).
[16] Casos como esses são, certamente, muito comentados. Uma das atividades prediletas por muita gente-de-santo é a crítica a outros terreiros, conforme já comentado, desde o comportamento do líder, sua vida pessoal confundida com sua função de sacerdote, os ritos dos terreiros, a roupa dos Orixás, os toques e cantigas supostamente cantadas erradas, demonstração de incompetência, todos esses elementos e muitos outros são motivos para fazer críticas irônicas e ferozes. Segundo Pai Beto são vários os casos de xoxação. Ele comenta que um dia estava em seu quarto, em uma das festas em sua casa, quando ouvia das gretas da janela amigos dele comentando sobre a ostentação das festas em sua casa. Outro caso de xoxação comentado por ele, chateado, ligava-se ao fato de uma pessoa de cargo inferior ao seu, e mais novo de santo, um ogã que ocupa em um outro terreiro o cargo de pai-pequeno, ter sorrido “de canto”, ironicamente, e feito comentário com outros próximos a ele, por que o Pai Beto estava cantando para o bolo. Os terreiros de candomblé tradicionais, mais atávicos as suas origens também são alvos de “xoxação”, fala-se da roupa da mãe-de-santo, da vida pessoal, das cantigas etc., mais os maiores alvos são os candomblés “modernos” apesar de ter um grande público, especificamente naquelas festas que se tem muita bebida como nas votivas a Exu, com o transe nos filhos-de-santo.
[17] Voltaremos a esse ponto nos próximos capítulos.
[18]No caso paulista observa Gonçalves (1995) que com a publicização dos candomblés, proveniente da adesão de um número significativo de indivíduos de classes sociais mais favorecidas, esses indivíduos tem levado a cabo a empreitada de busca a uma valorização ostensiva a África, com as freqüentes viagens à Nigéria e ao Benin, cuja finalidade é o resgate dos conhecimentos através dos Congressos ou visitas aos templos dos Orixás de lá, ou para dar obrigação e receber títulos honoríficos. Esta ida a África permite uma maior visibilidade do sacerdote e lhe garante um coroamento em sua carreira sacerdotal (ibd;271).
[19] Diferentemente, os candomblés tradicionais baianos não se mostram com grandes preocupações em ir a África na busca de raízes, na medida que esses terreiros se consideram as raízes.
[20] Com a criação do CEAO observa Risério, se criou um campo magnético cujos efeitos se estendem até os dias atuais. A exemplo do “Projeto terreiro" da Fundação Gregário de Mattos, em 1985, que teve a iniciativa inédita no campo da administração pública do país de uma política de preservação e recuperação dos terreiros de candomblé,” quando até então a ação estatal se reduzia à preservação de monumentos de pedra e cal da etnia dominante"(Risério;1995:60). Do mesmo modo, que se criou o tombamento aos terreiros fundantes pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional). O que também possibilitou a implantação das casas do Benin e de Angola.
[21] Nos “tempos antigos”, a reclusão no terreiro durava entre seis meses e um ano, o que limitava as atividades econômicas dos filhos-de-santo (ibd; 1977:11).
[22]Segundo Costa Lima a entrega do decá nem sempre é dado automaticamente, freqüentemente os sacerdotes recusando-se a entregar o cargo de pai ou mãe-de-santo. Na sociedade moderna, em que se diminui a interação face a face, os filhos-de-santo por razões de ordem econômica vão ao terreiro com mais freqüência no período das obrigações, não lhe conferindo competência para exercer o sacerdócio. O sábio sacerdote expõe ao seu filho-de-santo a recusa atribuindo a decisão ultima dos Orixás. Caso não haja uma aceitação da recusa por parte do filho-de-santo, este provavelmente ira “fazer a obrigação em outra casa’, geralmente de um líder rival de sua mãe que prazerosamente aceito o encargo e completa a obrigação de ebômi, entregando-lhe o ambicionado decá " (Costa Lima; 1999: 47).
95.Observei esse ritual no terreiro de Pai Beto, na entrega do deká a Fomo de Oyá que consistiu em uma entrega de uma cabaça cortada ao meio (em alguns terreiros em vez da cabaça é uma peneira) com os objeto relacionados ao ato da iniciação dos futuros filhos-de-santo “feitos”, os objetos são os búzios para implantação da prática divinatória, uma navalha, e o rumgebe (colar de miçangas marrom avermelhado com coral vermelho e uma conta azul - segui).
96Àbikú são espíritos que tivera diversas aparições, julga-se vir ao mundo por um breve momento para voltar ao mundo dos mortos, orum, várias vezes. Maior detalhes sobre os àbikú sobre os àbikú ver Verger. Pierre- A sociedade Egbé Orun dos Àbikú, as crianças nascem para morrer várias vezes. In: Afro-Ásia, N.14 CEAO-UFBa.1983.
[25]Muitos dos líderes não tão ortodoxos utilizam-se do expediente fotográfico como forma de registrar o ato de iniciação, a fim de garantir legitimidade, sobre a possível contestação de sua iniciação.
[26] As sessões de giro de Exu ou as festas, paulatinamente, vêm tendo um colorido umbandista. Geralmente, as festas tem início com cânticos em língua Angola e os atabaques são tocados com as mãos, traço distintivo do toque Angola em relação ao Keto, que toca-se com varinhas de araçazeiro, aguidavis. Saúda-se todos os inquiçes, equivalentes aos orixás nagôs, e após os cânticos têm início o transe dos filhos-de-santo pelos seus respectivos Exus, esses Exus diferem do Exu africano, são espíritos de indivíduos que tiverem uma conduta moral transgressora: bêbados, malandros e prostitutas, essa ideologia advém do espiritismo Kardecista em que essas entidades estariam em estágio de evolução cármica. Curiosamente, essa modalidade de culto se processa em casas que também reivindicam a tradição nagô. A exemplo do terreiro Ajaguna de pai Beto de Oxalá que foi sistematicamente estudado na pesquisa do mestrado. O terreiro é classificado pelo pai-de-santo como Keto, recorrendo às vezes a uma linhagem Angola. Não obstante, incorpora os comportamentos rituais da umbanda. Afirma o pai Beto respeitar a umbanda, mas não se mostra muito adepto das práticas e ideologias, explica que é forcado pelas pressões do mercado religioso, quando afirma que só cultua Pomba Gira pela procura de suas clientes, segundo ele algumas dessas senhoras saem dos seus carros manifestadas, pedindo-lhe cigarro e bebidas.
Irei tratar de forma esquemática algumas considerações sobre os candomblés da Bahia, os mais variados candomblés, aqueles chamados de casas tradicionais e os que estão fora desse eixo, dialogando com a categoria que é manipulada pelo agentes religiosos que é a categoria de tradição.
A noção de campo é a que mais contempla o estudo das religiões afro-brasileiras, particularmente, no caso de Salvador, o candomblé. O campo é compreendido por Bourdieu como o espaço social das relações de força mais ou menos desiguais, em que os protagonistas, agentes dotados de um domínio prático do sistema, de esquemas de ação e de interpretação, se situam com posições bem demarcadas, levando consigo, em todo tempo e lugar, sua posição, presente e passada, na estrutura social sob a forma de habitus.
Os agentes dos candomblés travam uma luta pela distribuição de um capital específico acumulado em lutas anteriores a formação desse campo minado por dissensões, que acaba por delinear como uma marca o campo cientifico do estudo de religiões afro-brasileiras.
O campo é o espaço do jogo e o habitus o social inscrito no corpo, “no indivíduo biológico, permitindo a produção, reprodução e difusão de uma infinidade de atos de jogo que estão inscritos no jogo em estado de possibilidades e exigências objetivas” (Bourdieu; 1990:82). O habitus é um conhecimento adquirido, consistindo em um sistema de disposições duráveis e transmissíveis, predisposto a funcionar como princípios geradores e organizadores de práticas e representações de um estilo distintivo de vida, funcionado, a cada momento, "como uma matriz das percepções, apreciações e ações, e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas, e às correções incessantes dos resultados obtidos" (Pinto; 2000: 65), sem que tenha por princípio a busca consciente do objetivo.
O campo religioso é organizado em um sistema de relações entre os detentores do monopólio da gestão dos bens sagrados e os leigos, e se constitui pelas posições adquiridas entre o corpo de especialistas e fíes, em lutas anteriores para a própria consolidação do campo, tendo por excelência um espaço em que tem lugar um luta concorrencial pelo controle dos bens simbólicos.
A religião funciona como um princípio de estruturação que constrói a experiência, ao mesmo tempo em que a expressa, pelo efeito da consagração ou legitimação. A religião submete o sistema de disposições em relação ao mundo natural e ao mundo social a uma mudança na natureza “em especial convertendo o ethos enquanto sistema de esquemas implícitos de ação e de apreciação em ética enquanto um conjunto sistematizado e racionalizado de normas explícitas.
Por todas razões, a religião está predisposta a assumir a função ideológica, função prática e política de absolutização do relativo e de legitimitimação do arbitrário” (1982:46). Neste sentido, a religião consiste no reforço do material e do simbólico possível de ser acionada por um grupo ou uma classe, garantindo legitimidade a tudo que define este grupo ou está classe. Logo, a religião permite a legitimação de todas as propriedades objetivas e subjetivas de um estilo de vida singular, por representar a religião a inculção de um habitus.
A constituição do campo das religiões afro- brasileiras.
No campo das religiões afro-brasileiras, o candomblé se constitui em uma das vertentes mais destacadas na área urbana do Brasil. Organizado em um sistema simbólico, que funciona como um princípio de estruturação de uma experiência de ação intra-mudana e produz um ethos “enquanto sistema de esquemas implícitos de ação e de apreciação” (ibd; 146).
Com base em Weber, Bourdieu argumenta que o processo de racionalização religiosa envolve a transformação do ethos implícito em ética - conjunto sistemático e racional de normas explicitas. A ação pedagógica do sistema de crença afro-brasileiro é norteada pela tradição oral de transmissão e preservação dos preceitos sagrados. Entretanto, também podemos observar no candomblé um trabalho crescente de racionalização desenvolvido por uma camada de intelectuais interna à própria religião que orienta todo o pensamento do grupo. Constituindo cada vez mais para a transformação do ethos em ética, no sentido que Weber dá ao termo.
O campo religioso tem por função específica satisfazer um tipo particular de interesse, isto é, o interesse religioso que leva os leigos a esperar de certas categorias de agentes mediadores na experiência religiosa, que realizem ações mágicas ou religiosas, ações, fundamentalmente, “mundanas” e práticas, conduzidas com a finalidade de que tudo corra bem para o corpo de fieis, que aderem a um sistema de crenças e a um estilo de vida particular.
As religiões afro-brasileiras, em particular os candomblés, se constituíram como um empreendimento de diversos agentes religiosos, que resultou na formação de um corpo de sacerdotes responsáveis pela sistematização de um ethos religioso calcado nas diversas tradições africanas. Esse corpo de especialistas detentores de um capital religioso, com um domínio prático dos esquemas de pensamento e normas e conhecimentos está incumbido de reproduzir o capital religioso.
Os pais e mães-de-santo dos terreiros de candomblé são reconhecidos como detentores exclusivos de um monopólio na gestão dos bens sagrados. Detentores de um domínio prático de um conjunto de esquemas de pensamento, somados a presença de traços africanos, em maior ou menor intensidade, passaram esses traços diacríticos a funcionar como elementos definidores de suas legitimidades e competências, necessários à produção e reprodução de um corpo deliberadamente organizado de conhecimentos esotéricos e secretos. Suas autoridades são inquestionáveis no âmbito mítico-ritual, seus perfis de liderança são desenvolvidos na dinâmica concreta dos seus terreiros, pela sua capacidade de manter a estabilidade, controlar os conflitos, de garantir o recrutamento contínuo e evitar a deserção dos membros e da clientela, processo que consolida e a prova sua legitimidade pela competência em administrar os bens sagrados.
É o pai ou mãe-de-santo que os fieis vêem como a “âncora” ou o “porto seguro” contra os perigos do universo das aflições. Os seus sucessos e fracassos vão lhes conferindo uma identidade, atribuindo uma identidade aos terreiros que administram, enquanto uma entidade reconhecida no campo religioso, que revela o resultado de suas decisões e ações, mediatizados pela rede de relações e circunstâncias que poucas vezes chegarão a controlar completamente. Desta maneira, o sacerdote e o terreiro se identificam, pois os destino de ambos estão interligados (Bruman & Martinez;1991:150).
A constituição do campo religioso afro-brasileiro implica um primeiro corte entre os detentores do controle dos bens religiosos- iyalorixás e babalorixás – e aqueles que lhes são subordinados: os abiã, iawô, egbomi, ekedes e ogãs e a clientela. Segundo Weber (1991), os sacerdotes sistematizam o conteúdo da promessa profética ou das tradições sagradas no sentido da estruturação racional-causuística e da adaptação destas aos costumes mentais ao estilo de vida de sua própria camada e daquela dos leigos por eles dominados (1991:315), processo este que é marcado por uma dinâmica de poder envolvendo alianças e negociações e por vezes conflitos abertos.
Os responsáveis pela formação e consolidação das “roças” foram uma camada religiosa, liderada pelas Iyás (mães, zeladoras) e Babás (pais) auxiliados por uma confraria hierarquizada, constituindo um corpo de especialistas socialmente reconhecidos entre os escravos e libertos, nos meados do século XIX.
Esses indivíduos se destacaram pelo seu carisma e pela posição que alguns deles ocupavam na estrutura religiosa na África; no Brasil passaram a ser reconhecidos como detentores exclusivos de uma competência, necessária a produção/reprodução e difusão do sistema de crença africano, transformado em afro-brasileiro
O campo das religiões afro-brasileiras, em particular aquele conformado pelos terreiros de candomblé foi organizado, inicialmente, de forma cooperativista, tecendo alianças entre as etnias, que muitas vezes eram rivais historicamente no continente africano, existindo no interior dessas comunidades uma permanente ajuda mútua, trocas de favores, mantendo-se assim uma solidariedade via teias de prestações e contraprestações que terminaram “por engendrar relações mais próximas, contatos mais efetivos e afetivos, muitas vezes consolidados pelo estabelecimento de laços religiosos duradouros” (Braga;1995:60).
Essas redes de relações entre os agentes religiosos levaram a criação de organizações conventuais, estruturadas em normas e padrões étnicos, manipulando determinados sinais diacríticos (língua, culinária, sistema mitológico, rituais, etc.,), em oposição a outros sistemas de crenças, oriundos do continente africano e dos índios brasileiros.
Essas organizações conventuais são os terreiros ou roças de candomblé. São instituições resultantes da manipulação dos traços identitários das civilizações africanas que se organizaram em nações, aqui no Brasil. Desse modo, a nação não é apenas a procedência territorial (Costa Lima;1997: 77-8), mas sim todo um conjunto de padrões ideológicos e rituais.
Se o tráfico de escravos foi um fator de desagregação étnica, paradoxalmente, foi também um componente da construção de novas identidades e novas tradições na América. Essas identidades chamadas de nação adquiriram um uso suficientemente amplo para integrar diversas tradições, funcionando como uma rede, ou melhor, constituindo uma teia de alianças. O terreiro passou a condensar os valores de uma África mítica. Isso significa dizer que os Orixás na África pertenciam a localidades (grupos étnicos) diferentes e transplantados para o Brasil passam a se concentrar no mesmo território.
O terreiro (egbé) é o espaço físico impregnado de signos que revelam a consciência ancestral, não sendo apenas uma área delimitada geometricamente. No terreiro estão presente as representações do aiyé (terra) e do orum (espaço transcendental), representado nos assentamentos dos Orixás e Eguns, Exu e Caboclos. Decerto, o terreiro é o lugar pertinente a manipulação de símbolos pelos fieis que partilham uma socialização calcada na herança, conjunto de bens simbólicos que se recebeu dos ancestrais.
E foi o terreiro o expediente mais eficaz na manutenção de uma tradição re-semantizada e resimbolizada. Os terreiros de candomblé organizados enquanto uma comunidade com características próprias de área verde, representando a floresta sagrada, o barracão, salão principal das festas públicas com espaços delimitados aos membros efetivos da casa e à assistência, as áreas sagradas destinadas à iniciação e reclusão dos neófitos, as casas dos Orixás, como pode ser visto atualmente, se constituíram como informa a literatura etnográfica afro-brasileira (Carneiro, 1948; Costa Lima, 1977) no primeiro quartel do século XIX. Como nota Serra (1995:33) os cultos afros já eram realizados há bastante tempo e a indicação de uma faixa temporal, por certo, se refere à criação de um modelo de culto dominante.
Importância conferida a tradição nagô.
Na Bahia, os candomblés almejavam o ideal de pureza de suas nações severamente exigido pelos sacerdotes e sacerdotisas, a exemplo de Martiniano Eliseu do Bonfim e Mãe Menininha do Gantois (Pierson; 1971, Landes; 1967) que endereçavam as suas críticas especificamente aos sacerdotes que introduziam na prática religiosa o culto dos Caboclos, e que admitiam o transe nos homens (...) “estão acabando com tudo, estão jogando fora nossas tradições. E permitem que homens dancem para os deuses”(Martiniano Citado em Landes; 1967:38).
Aos olhos severos dos sacerdotes da tradição dos candomblés jeje-nagô do início do século passado (Pierson;1971 Landes;1967), os candomblés que inseriam em suas práticas o culto dos Caboclos, também chamados de encantados (Carneiro;1991), estavam "deturpando" a tradição jeje-nagô.
Pierson (1971) aponta para uma quebra da pureza de alguns terreiros de candomblé que já tomavam de empréstimo cerimônias de outras nações e inseriam os cultos de Caboclo, sendo alvo constante de desprezo pelos líderes ortodoxos da tradição nagô. O pai-de-santo, Francisco da Roça Branca era questionado quanto a sua competência e legitimidade frente a tradição, por um velho sacerdote a Donald Pierson:
Quem são os seus avós, que é que eles sabiam? Foram educados na seita? Será que deixaria o cargo para ele? Não . Ele veio do sertão e quer fundar um candomblé. Apreendeu um pouco de gege, um pouco de nagô, um pouco de Congo, um pouco dessas coisas de índio e assim por diante. Que mistura desgraçada? (Pierson;1971:305).
Outra mãe-de-santo ortodoxa vangloriava-se de seu candomblé ser nagô puro, apontando para a mistura nos terreiros de então, os novos, com a “bobagem de caboclo”. Continua a mãe-de-santo: “Ora, êles não sabem nada do jeito de fazer estas coisas da África.” (Pierson;1971:305)
Acredita Donald Pierson que as disputas e mexericos a respeito das práticas não ortodoxas se dava em grande medida pelo decréscimo do número de africanos, aumentando assim a competição entre os terreiros. Os terreiros tendiam a romantizar o prestígio dos “velhos africanos” como Bamboxé, Adetá, Ialode Erelu e outros. Da mesma maneira, detinham prestígio os líderes mais velhos ainda vivos no culto, como o babalaô Martiniano, Mãe Aninha e a velha Maria Badá, todos considerados representantes legítimos da “mais pura” tradição africana (ibd;339-340).
Landes efetivou uma pesquisa de campo nos candomblés baianos nos anos de 1938 e1939[1]. Ela destaca o culto de Caboclo na roça de Mãe Sabina. Iniciada no culto por Silvana, com quem rompera laços, Mãe Sabina mostra-se frente a Landes mais preocupada em expandir seus serviços religiosos no mercado dos bens simbólicos do que em manter o ideal normativo da tradição. Usava vestidos “bem talhados” em vez das habituais saias rodadas, maquiava-se à moda da época, com o rouge tão censurado por Menininha no que toca a apresentação de sua filha Cleusa. Sabina ainda alisava os cabelos a ferro quente, sendo alvo constante de severas críticas pelas "grandes mães", que interditavam em suas filhas-de-santo o uso do ferro quente sobre as cabeças, moradas dos Orixás.
Do mesmo modo, o babalaô Martiniano Elizeu do Bonfim expressava seu preconceito aos Caboclos: acreditava que os cultos de Caboclos viriam a “deturpar” a tradição nagô. Além do mais, os cultos de Caboclos permitiam a inserção do transe masculino, considerado e associado aos homens com comportamento homoerótico (Birman:1995).
Segundo Martiniano a possessão pelos Orixás nos candomblés iorubás tinha um caráter feminino, conforme se observava nos candomblés de Aninha (Axé Opô Afonjá), de tia Massi (Casa Branca) e de Menininha (Gantois). Do ponto de vista de Martiniano os terreiros que cultuavam o Caboclo se proliferavam por toda parte em grupos de cultos sem tradição.
A penetração do culto dos Caboclos se deu inicialmente, nos terreiros da nação Angola, apesar de que atualmente a maioria dos terreiros de nação keto realizam uma festa anual para os Caboclos, excetuando os candomblés do Engenho Velho, a Casa Branca, o Gantois [2] e o Axé opô Afonjá, [3] como no tempo de Martiniano. Contudo, os filhos-de-santo dessas casas-de-santo podem vir a receber seus Caboclos, com a interdição de não receberem essas entidades nos terreiros em que foram iniciados.
Os primeiros estudos antropológicos sobre o universo das religiões afro-brasileiras foram realizados sobre os candomblés nagôs. Edson Carneiro foi o primeiro a mostrar interesse pelos candomblés tidos como não puros ou poucos ortodoxos conforme avaliava serem os candomblés bantos e os de Caboclo.
Pertencente a escola baiana dos estudos afro-brasileiros, fundada por Nina Rodrigues, Carneiro tem sua obra eivada do etnocentrismo em vigor na época. Entretanto, ainda nos serve de ponto de partida para o estudo dos Caboclos, pela minuciosa descrição das cantigas e nomes dos Caboclos cultuados outrora na Bahia[4].
Contudo, a noção de pureza dos cultos afro-brasileiros é facilmente, reconhecível na analise da literatura antropológica do inicio do século XX, nas obras de Nina Rodrigues, Artur Ramos, Edson Carneiro, Ruth Landes, Roger Bastide até a década de setenta do século passado.
Os intelectuais buscaram uma correspondência entre a valorização da tradição africana e a valorização de uma tradição anti-sincretica, “pura”, que remetia tanto a uma perspectiva intelectual de pensar o afro-brasileiro, quanto a uma prática religiosa mantida pelas casas-de-santo tradicionais na Bahia.
A concepção de pureza foi discutida por Dantas (1988) que imputa o ideal normativo de puro do modelo jeje-nagô ao papel constitutivo dos intelectuais nas suas configurações analíticas de uma valorização da África.
A disputa pelo monopólio dos bens religiosos ente os praticantes das religiões afro-brasileiras, tendo como capital a tradição africana acabou tendo uma ressonância no campo cientifico que a estudava.
Escreve Dantas:
a pureza nagô, assim como a etnicidade seria uma categoria nativa utilizada pelos terreiros para marcar suas diferenças e expressar suas rivalidades que se acentuam na medida em que as diferentes formas religiosas se organizam como agências concorrências no mercado de bens simbólicos (Dantas; 1988:148).
Dantas acredita que a construção ideal típica jeje-nagô teve grande influência dos intelectuais que realizaram suas pesquisas nas casas-de-santo tradicionais baianas da nação keto. Para ela os intelectuais transformaram a "pureza nagô" de categoria nativa em categoria analítica, através do modelo nagô, tido como o mais puro, original para cristalização de traços culturais que passaram a serem tomados como expressão máxima de africanidade.
Desde o início dos estudos científicos sobre o candomblé, os pesquisadores das religiões afro-brasileiras, com tendências a explicações em termos de genética cultural classificaram os terreiros de suposta origem iorubá como sendo, de algum modo, mais “puros” que os de origem banto”. Desse modo foram classificados de impuros os que não tinham absorvido as práticas iorubá (Fry; 1982:50).
Para Ferreti (1997) a crítica ao que se convencionou chamar tanto nos circuitos acadêmicos como entre o povo-de-santo de “pureza nagô” não pode ignorar a tradição preservada em muitos grupos de Candomblés baianos e Xangôs pernambucanos e a Casa das Minas em São Luís, como vem fazendo alguns autores que a consideram uma invenção intelectual.
Tem-se em mente que este é um problema que diz respeito às disputas de poder e prestígio tanto no campo acadêmico quanto no campo religioso (Ferreti;1997:70-1). A idéia de pureza foi idealizada pelos pesquisadores concomitante com a idéia de tradição, relacionada com a história de cada casa-de-santo na preservação dos costumes e valores dos ancestrais africanos.
A partir da década de setenta, do século XX, inaugura-se uma série de análises mais atentas para as transformações das religiões afro-brasileiras, identificando uma nova morfologia social dos terreiros de candomblé. Passando a valorizar a descontinuidade, não mais presas a uma postura metodológica preocupada com pureza, origens e equilíbrio, essas análises chamaram atenção para o fato de que fazer ciência social é estar atento para qualquer forma de visão de mundo empreendida pelos atores sociais.
Como assegura Birman a dimensão sistêmica que pode, portanto, ser encontrada em qualquer lugar, inclusive (sobretudo) nas formas chamadas de sincréticas (Birman;1997:82), candomblés de nações misturadas, candomblés da nação Angola, candomblés de Caboclo e umbandas.
O papel dos intelectuais de ”dentro”.
Na história do campo afro-brasileiro a importância conferida aos elementos da tradição nagô encontra seu marco na figura de Martiniano. [5] Ele é um personagem importante na memória coletiva do povo-de-santo, mas importante também no processo de uma reafricanização dos candomblés da Bahia, vale ressaltar que foi um dos principais informante de Nina Rodrigues, que lhe pagava regularmente pelas suas informações, o próprio Martiniano revela a Landes e a Edson Carneiro.
Nascido sob a escravidão, fora enviado à África pelo pai, aproximadamente aos 14 anos, para estudar as tradições dos seus antepassados, tendo lá aprendido inglês nas escolas missionárias (Landes; 1967: 28-30). Martiniano, Ojeladé condenava a mistura de elementos de diferentes tradições e a camuflagem dos traços negros, como espichar os cabelos. Denunciava a indiferença pelas línguas africanas e censurava, com paixão, os terreiros que, liderados por mulheres, buscavam uma comunicação com os mortos.
Ressentia a falta de Mãe Aninha do Ilé Axé Opô Afonjá, onde participou ativamente, com o cargo de Ajimuda na casa de Omolu. Foi o presidente da União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia, cujos objetivos eram a imposição dos altos padrões tradicionais de conduta, assim como a defesa do culto contra a polícia que tanto atormentava os candomblés (Braga, 1995; Landes 1967).
Os “velhos” pais e mães-de-santo, em seu tempo, detinham um capital de autoridade. Bastide acredita que a razão dos velhos chefes dos candomblés tradicionais se oporem aos babalorixás “feitos do pé para a mão” (Bastide;1978:247), os sacerdotes que não passaram pelos rigores da norma introdutória das casas nagôs, chamados de “clandestinos”, estava no fato de que os seus poderes não dispunham de base alguma, ou seja referindo-se a uma ligação formal com uma casa-de-santo, através dos ritos iniciaticos.
Da mesma forma que os antigos chefes dos terreiros, os atuais, são movidos pelo seu prestígio e os seus interesses religiosos; ou seja, a necessidade de legitimação das suas propriedades materiais e simbólicos associados as suas posições de prestígio, frente aos cultuadores da tradição dos Orixás. A posição de destaque desses sacerdotes com suas mensagens religiosas foi, e ainda, é capaz de satisfazer os seus interesses religiosos, que tinham como capital a “tradição” frente a um grupo de seguidores constituindo o campo religioso das religiões afro- brasileiras (Bourdieu; 1974:51).
Elemento importante na história do campo religioso afro-brasileiro é a consolidação de uma camada intelectualizada proveniente dos próprios guardiões do candomblé, desde Martiniano-Ojeladé. Com a consolidação dessa camada de intelectuais de “dentro” verifica-se um movimento explícito de reflexão em torno de questões relativas à tradição e as mudanças nos procedimentos religiosos.
Esse movimento ganhou força a partir da década de setenta do século XX. Em 1974, um grupo de religiosos, sob a liderança de Mestre Didi, fundou a Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil; em 1981 o CEAO organizou o I Encontro de Nações de Candomblé, com a participação de acadêmicos e o povo-de-santo. Algumas Iyalorixás baianas das casas consideradas como as mais tradicionais, em 1983, assinaram um manifesto da dessincretização, ou descatolização, na Conferência Mundial da Tradição e Cultura dos Orixás (CONTOC)[6].
Para essa camada de intelectuais do candomblé, entretanto, seguir a tradição não é uma recusa a modernidade conforme transparece nas observações feitas pelo Pai Cido de Oxum no seu livro A panela do segredo (2000):
Nenhuma religião sobrevive se não acompanhar as mudanças que acontecem no mundo, seja no campo social, tecnológico, cientifico etc. O Candomblé, para sobreviver ao longo desses anos, teve que se modificar, e essa é uma realidade, embora alguns prefiram negar.(...). Manter uma mentalidade arcaica não é sinônimo de seguir a tradição. A tradição do Candomblé não reza que se deve ralar feijão-fradinho na pedra; aliás, esse recurso nada mais é do que tecnologia de determinada época. Atualmente, outros aparelhos, o moedor ou liqüidificador, por exemplo, ajudam a cumprir essa tarefa mais rapidamente e de forma mais eficaz. A maquina que faz a massa do acarajé[7] não muda a dedicação nem o amor do filho ou filha-de-santo.(2000:68)
Os sacerdotes dos candomblés baianos estão sempre lançando mão de um discurso de autoridade, em suas mensagens religiosas de fidelidade as tradições, como estratégia política de afirmação dos seus terreiros na concorrência pelo monopólio dos bens simbólicos.
É crescente o número de publicações escritas pelas pessoas de dentro do candomblé, como observa Gonçalves (1998), “etnografias domésticas”. Estas publicações são uma das estratégias utilizadas pelos sacerdotes para consolidar seus pontos de vista. Pai Cido enfatiza (2000) que “todo terreiro de Candomblé deve ter um site, para divulgar suas celebrações, contar sua história e convidar o mundo para conhecer o Candomblé” (ibd;70). É sabido da existência de sites de candomblé, cujo conteúdo varia da informação sobre a religião a serviços mágicos ofertados por essas agências.
O primeiro site sobre o candomblé foi o do Ilé Axé Opô Afonjá, elaborado pela filha-de-santo do referido terreiro Vera Felicidade - Oni Koiê. O site do terreiro do Opô Afonjá apresenta-se com o objetivo educativo de contar a história da casa, das suas Iyalorixás, da implantação do museu, voltado à preservação da memória da comunidade do terreiro. Conta ainda com as atividades educacionais desenvolvidas sob a liderança da Iyalorixá Stella Azevedo, que também, é autora de dois livros sobre o candomblé.[8]
Do mesmo modo, na busca de uma sistematização racional do candomblé em formas explícitas de reflexão, filhos-de-santo de classe média, ou vinculados a diversas entidades do movimento negro, ingressam nos cursos de pós-graduação, e têm escrito dissertações e teses sobre diversos aspectos do candomblé, desenvolvendo uma postura metodológica que enfatizam ser “de dentro para fora”, em oposição aos “intelectuais de fora”, cujo olhar, estaria contaminado pelas idiossincrasias ocidentais.
Nos seus terreiros esse grupo de filhos-de-santo, muitas vezes, não é visto com “bons olhos” pelos “mais velhos” sofrendo toda uma série de restrições, pois esses últimos não acreditam na “tradição das teses”. Mesmo assim os “intelectuais orgânicos” passam a constituir nos terreiros a qual são filiados uma camada de prestígio.
Os textos apresentados nos congressos e os livros que são editados por autores religiosos apresentam em muitos casos uma semelhança com as etnografias produzidas na academia, com as regras metodológicas de citação e referências bibliográficas, assim como a descrição etnográfica, a história dos terreiros, o esquema do panteão cultuado, os rituais, calendários de festas “e em alguns casos não faltam nem mesmo o desenho da planta do terreiro com designação dos diversos cômodos, semelhantes àquelas vistas nos livros de Roger Bastide e Edison Carneiro” (Gonçalves;1995:260).
Os sacerdotes autores que visam o estilo etnográfico acadêmico acabam supervalorizando esse estilo. Gonçalves (1998) observa que essa tendência dos “intelectuais orgânicos” do candomblé ao fazerem uso do estilo etnográfico acadêmico acaba por colocar em segundo plano “outras formas alternativas do grupo de auto-representar através da escrita” (ibd;198). Entretanto, pode-se observar alguns exemplos significativos na voz autorizada dos “de dentro”, e que não imputam ao leitor um estilo acadêmico.
Autores sacerdotes procuram expor a sua visão de mundo, particular da sua experiência do candomblé, através da inscrição dos mitos da tradição dos seus terreiros. Essa preocupação é mantida nas obras de Mestre Didi História de um terreiro nagô, Caroço de dendê de Mãe Beata de Iemanjá, filha do terreiro do Alaketo, Meu Tempo é Agora da Iya Stella Azevedo, que diz:
A tradição somente oral é difícil. Os Olórsà tem que se alfabetizar, adquirir instrução, para não passar pelo dissabor de dizer sim à própria sentença. A essência não se modifica, é o alicerce de tudo. Só pode passar Ase quem o recebeu. Ninguém ignora a avalanche de livros sobre o jogo de búzios, receitas de ebó, iniciação e por aí adiante. Tiram-se fotografias de ètutu, Orisá manifestados e demais awo. Isso é profanação, involução, destruição da religião; o jogo do inimigo. E ponto final (Santos.Maria Stella de A, 1995:22 apud Gonçalves;1998:199).
As etnografias realizadas por essa camada de intelectuais “de dentro” se tornam, então, um desafio: por um lado a tradição oral é considerada como elemento central do aprendizado religioso [9] por outro a produção escrita acaba representando um sinal de valorização positiva das representações e práticas do candomblé. Neste sentido tendem a demarcar a autoridade de suas mensagens. Essa camada religiosa de intelectuais busca empreender uma sistematização da doutrina, através também de iniciativas como a proposta das Conferências Mundiais da Tradição e Cultura dos Orixás, em 1983, do fim do sincretismo religioso [10], e nos recentes debates do Alaiandé Xirê (festival de música afro-religiosa), que reúne líderes dos candomblés do Brasil e de Cuba, acompanhado de seminários e feira, organizados nas dependências internas do Ilé Axé Opô Afonjá.
Vale salientar, também, a existência de uma literatura religiosa empenhada em fornecer uma série de informações religiosas básicas, a exemplo da revista Orixás que pode ser encontrada em qualquer banca das grandes cidades brasileiras. Trata-se de informações que buscam orientar o leitor em praticas mágicas, jogo de búzios e despachos.
Essa literatura tem as mais variadas fontes desde as fontes orais quanto escritas, sendo muitas vezes reproduções de trechos de etnografias, sem nenhuma referência bibliográfica, o que certamente requer uma atenção maior para novas pesquisas (Gonçalves; 1995:260).
Essa sistematização racional efetivada pelo corpo de sacerdotes intelectuais do candomblé, por um lado, cria laços de aliança e reciprocidade com os intelectuais acadêmicos [11], (Gonçalves;1998:202), por outro acaba criando uma nova luta concorrencial, agora pelo monopólio de falar de si, instaurando um conflito com os intelectuais acadêmicos, em alguns momentos velados, em outro aberto (como nos seminários promovidos pelo povo-de-santo, em que são feitas as críticas aos cientistas sociais).
Assim, os chamados “nativos” passam a questionar a voz autorizada dos pesquisadores, insurgindo-se contra a condição de meros colaboradores, informantes valorizados/privilegiados, tradutores do seu sistema cultural para o antropólogo. Os sacerdotes intelectuais acabam delineando novas linhas de ação no campo da pesquisa sobre as religiões afro-brasileiras, com a sua produção literária, sendo referência obrigatória nos novos estudos das religiões afro-brasileiras.
Muitos desses sacerdotes autores acusam alguns cientistas sociais de terem efetivado suas pesquisas sobre o candomblé para vantagem em benefício próprio, promovendo-se no meio acadêmico, e não proporcionando benefício algum as casas a que fizeram de laboratório, deturpando muito do que lhes foi informado, ou equivocando-se nas suas interpretações e muitas vezes revelando os segredos a que tiveram acesso [12].
Em suma, estes sacerdotes intelectuais dos candomblés baianos consolidam uma camada religiosa que repensa a tradição afro [13], exercendo uma liderança importante na mobilização contra a intolerância religiosa que o candomblé ainda vivencia, e contribuindo na sistematização da mensagem religiosa. Neste sentido, podemos dizer que o processo de sistematização do candomblé é o resultado de uma luta concorrencial no campo religioso, dando-se em parte como estratégia de defesa contra diversos concorrentes, tanto no âmbito interno (processo que desqualifica terreiros distantes do modelo dominante) quanto no âmbito externo (a exemplo das igrejas evangélicas e o catolicismo). Assim, embora a oralidade (Hampâté Ba;1982, Vansina; 1982, Leite;1986, Santos;1977) ainda seja norteadora dos modos de aprendizado e transmissão do saber, a produção escrita, na medida em que garante maior visibilidade ao candomblé, ou melhor, dos terreiros empenhados na sistematização do corpo místico e ritual é uma estratégia cada vez mais valorizada.
Estratégias de desqualificação e qualificação do campo afro-brasileiro.
O processo de consolidação do campo religioso afro-brasileiro envolveu uma série de disputas que se processaram e ainda se processam tanto a nível externo – entre as casas-de-santo – quanto a nível interno - entre os diferentes grupos de um terreiro. Essas disputas se cristalizam nas rivalidades entre os grupos de um terreiro que almejam a confiança do pai ou da mãe-de-santo, e são acirradas nas disputas pelos cargos honoríficos.
As rivalidades são muitas vezes marcadas por confrontos verbais entre seus pares, criando uma atitude desafiadora (Birman; 1995:99) cuja tônica é dada pela tentativa de comprovar que o outro (irmão-de-santo, ou , um indivíduo pertencente a outro terreiro) está “errado”, isto é, não está realizando os preceitos como reza a “tradição”, não atentando para o modo correto de agir, seja no uso de expressões adequadas, proferimento de formulas mágicas, conhecimento das cantigas, das folhas sagradas, etc.
Em suma, esses traços que são, constantemente, apontados nas acusações e ofensas, como “marmotagem” ou eke, acabam por delinear uma forma ideal típica a qual devem estar atentos os membros dos candomblés baianos de “olhos e ouvidos bem abertos” para não caírem nas “más língua”, na indaka de kafurungonga, nas “línguas-de-trapos”, que “falam pelos cotovelos”; o famoso ejó[14].
Braga assevera que através da fofoca é possível chegar às tramas mais complexas dos candomblés. Por um lado, à fofoca apresenta-se como condenação de certos comportamentos via insultos e ofensas gratuitas, chegando mesmo a gerar conflitos mais sérios, quando as acusações são de feiticeira. Desta forma constitui uma prática subliminar de preservação da tradição. Por outro lado, entretanto, os comentários jocosos são também forte indicativos das inovações processadas no âmbito religioso:
Na medida em que veicula e critica, na sua circunstância aparentemente negativa, aqueles acontecimentos que não deveriam ocorrer, posto que ferem ou se chocam com os preceitos da tradição estabelecida, o ejó termina sendo, de alguma forma, a crônica da novidade no espaço comunidade – terreiro, a própria etnografia da dinâmica que assinala as ocorrências que se afastam da tradição “fossilizada”, do que estava cristalizado como herança religiosa imutável e, assim, visualizado como indicador preciso da nova ordem que se estabelece ou que está em via de se estabelecer (Braga; 1998:25).
No candomblé o conhecimento é transmitido oralmente em estágios específicos para cada filho-de-santo. Estes conhecimentos, ou fundamentos, são o marco principal da diferença, delimitam o lugar do indivíduo na estrutura religiosa e sua distância frente a outros.
Desta forma, a competência é sempre reafirmada na acusação de que um certo agente religioso não tem autoridade, ou não tem domínio dos fundamentos, não é “um entendido nos preceitos”, nos saberes litúrgicos. Para que o indivíduo venha a deter o saber que marca o seu diferencial faz-se necessário à observância gradual dos preceitos em consonância com o grau que ocupa na estrutura religiosa.
A transgressão dessa regra religiosa pelo filho-de-santo que se esforça em dominar os segredos, antecipando, ou melhor, atropelando, o seu tempo de iniciação, estará ferindo as regras da estrutura dos candomblés e o insolente (afojudi) terá seu comportamento reprovado pelo povo-de-santo mais ligado às tradições. Argumenta Braga que esse comportamento ainda põe em risco a própria noção de poder vigente nos candomblés apoiada na idéia de “deter os fundamentos” (ibd;25). Tendo em vista que o conhecimento devera obedecer estágios iniciáticos e a ruptura destes estágios culmina com um conhecimento fragilizado, aprendido em casas cuja tradição difere, pois cada casas constrói as suas tradições. Da mesma forma, esse grupo de filhos-de-santo empenham-se no aprendizado ritual em livros, muitos escritos por sacerdotes, que acabam sendo uma fonte de obter informações, antes tido com toda gama de restrições, envolto em mistérios e segredos.
Ao buscar o entendimento do processo de consolidação dos candomblés baianos não se pode esquecer ou menosprezar as disputas internas a este universo religioso, pois estas constituem uma estratégia eficaz de demarcação de terreno na competição no mercado religioso, até mesmo em uma simples conversa entre alguns membros dos candomblés percebe-se às vezes um tom ameaçador.
Salienta Birman que esse tom ameaçador se constitui numa relação de desafio “onde poderá se instaurar um diferencial de competência que irá colocar numa relação de falta em relação a esse saber absoluto” (1995:100), travando desse modo uma luta simbólica que tem como finalidade uma elaboração diferencial da identidade.
A busca de uma dominação seja do tipo tradicional ou do tipo carismático (em termos weberianos) “nagocêntista” ganha contornos especiais nas rivalidades entre as casas-de-santo. Entre os expedientes reveladores dessas rivalidades estão as estratégias desenvolvidas por membros de alguns terreiros de candomblé para desqualificar as práticas dos terreiros concorrentes, ou com as habituais expressões faciais baianas de desprezo, ou descaso no assunto a exemplo do simples gesto em balançar a cabeça, como sinal de reprovação, da mesma maneira que “torcer os lábios para o canto”, “arregalar os olhos par cima” ou recorrendo no limite para a fofoca [15].
A luta simbólica travada historicamente no campo das religiões afro-brasileiras cristalizou, ou melhor, sedimentou, uma “hegemonia ‘nagô’, mesmo em relação a outros candomblés igualmente tradicionais e estruturalmente próximos as suas origens” (Braga 1995: 38).
Expediente eficaz são as críticas irônicas, ferozes, indiscretas e desmoralizantes, acionados pelo povo-de-santo, um tipo de zombamento conhecido como xoxação. Geralmente, as críticas ocorrem já no próprio espaço do terreiro em que esta se dando uma festa, nos arredores do barracão, ou nos bares que ficam próximos aos terreiros, (atrativos de uma grande clientela nos dias de festa). Birman (1995) observa que no candomblé não há quem não seja objeto de “xoxação” [16], qualquer atitude frente aos ritos pode ser criticada severamente, por não se adequar aos rígidos padrões idealmente concebidos. Por mais que todos efetivamente se cuidem para evitar os comentários maliciosos, estes acabam sendo inevitáveis, pois constituem um dos mecanismos básicos para a reprodução do diferencial constitutivo da identidade (ibd.:100).
Os alvos prediletos dos comentários jocosos são os pais, mães e filhos-de-santo chamados de “fura-rucô, aqueles indivíduos que mostram uma assiduidade nos candomblés da cidade, e que porventura acabam incorporando em seus terreiros práticas vistas em outras casas-de-santo (Braga; 1998). Estas incorporação de práticas no modos vivendos dos terreiros acabam por gerar tensões e disssenções na comunidade, haja visto que os filhos-de-santo mais velhos foram sociabilizados com um conjunto simbólico de representações e práticas que habituaram a partilhar. Assim, como forma reprovatória a inserção destas práticas surgem as diversas formas de agressões, por parte dos que se colocam como guardiões da tradição. Estas agressões varia desde aquelas consideradas enquanto simbólicas, as que ficam no campo da verbalização com toda gama de insultos, até mesmo aquelas que acabam por culminar em alguns casos nas agressões físicas.
Essas agressões simbólicas como “xoxação”, “sotaque” ou “desafio” ironia, brincadeiras maliciosas constituem-se como formas de construção da identidade no domínio da competência no campo das religiões afro-brasileiras. Destarte, na competição simbólica entre os terreiros existem formas consentidas de escapar desse jogo de acusações, muitas vezes cruel, a exemplo da alegação que fazem alguns sacerdotes mais novos, iniciados em casas menos reconhecidas, alvo predileto das acusações, de ter se filiado a um sacerdote tradicional, na busca da legitimação de suas representações e práticas.
É importantíssima, essa filiação. Eles não se iniciaram com esse pai ou mãe-de-santo, não entraram em reclusão nos terreiros destes para o aprendizado da gramática ritual, em muitos casos apenas “consertaram as suas obrigações” de um ano, três ou sete anos, ou apenas ofertaram obi às suas cabeças, isto é deram borí, comida a cabeça, de água ou sangue. Outros alegam que buscaram esses sacerdotes para fazer um “arremate”, acertar o que tinha sido feito “errado” pelo sacerdote anterior.[17]
Decerto, o candomblé sempre foi um espaço de relações de força entre terreiros cujo embate por vezes se expressa em termos de uma oposição às vezes velada e às vezes explicitas entre os guardiões da tradição, os detentores legítimos do saber sagrado, e os profanos da tradição, que passam a serem vistos como “charlatões”, “clandestinos”, “sincreticos”, “impuros”.
Porém, cada terreiro de candomblé, seja qual for a nação, keto, jeje, angola ou caboclo, assim como no passado valorizavam as suas tradições, acima de todas as outras nações proclamando a sua pureza. Segundo Bacelar (2001) apesar da existência de tensões e rivalidades entre os terreiros, uma oposição plena ou luta acirrada entre as casas nunca chegou a constituir traço característico do campo afro-baiano, haja vista o clima de simpatia e cordialidade que prepondera entre as casas de candomblé.
Acredito que essa cordialidade sempre existiu juntamente com as disputas. Não obstante, deve se atentar para o fato de que a solidariedade fica mais visível em terreiros que se constituem enquanto uma rede, pelo parentesco ritual, pelas disposições geográficas de pertencerem ao mesmo bairro, ou por uma afinidade calcada no grau da amizade entre sacerdotes.
Parto do suposto de que a não existência de uma maior solidariedade entre as casa-de-santo (apesar do apelo do povo-de-santo pela união em defesa das religiões afro-brasileiras, veiculado nos jornais das federações e entidades religiosas, assim como nos congressos promovidos pelos líderes de terreiros juntamente com seus “representantes” da academia) se deva ao fato de que na ausência de uma estrutura formal centralizada ligando entre si os vários terreiros, estes mesmo atendendo as etiquetas da hierarquia religiosa de prestar homenagem às casas mais antigas, passam a concorrer entre si pelo monopólio dos bens do sagrado. Nessa disputa o discurso da tradição aparece como um capital para demarcação de poder no mercado concorrencial dos bens simbólicos.
Cabe observar, contudo, que essa é uma tradição reinterpretada; os ritos e mitos, muitas vezes perderam sua originalidade e aqui foram resimbolizados, assim tal como a língua ritual dos cânticos, rezas e formulas mágicas, “identificável na sua estrutura e no seu léxico, mas certamente modificada em seus valores semânticos e fonéticos” (Costa Lima;1977:10).
As interpretações ocorridas dentro dos terreiros de candomblé não inviabilizaram o processo de redescoberta da África e africanização dos cultos, com a ida de sacerdotes ao continente africano, que traziam de lá, as especiarias, como inhame, corais, laguidibá, pano-da-costa, além de novas formulas mágicas, cânticos rezas, orikis.
As idas e vindas de Martiniano a Lagos, na Nigéria o levaram a entronização no corpo dos Obá de Xangô do candomblé do São Gonçalo, o Axé Opô Afonjá, e segundo Braga eram um “sinal inequívoco do quanto já significava, naquela época, a reafricanização ou, melhor dizendo, a ‘renagoização’ desses terreiros” (Braga;1995:48).
A busca da fidelidade da África, dos pedaços de tradição que são considerados perdidos ou esquecidos (Gonçalves;1999:152) já estava presente na dinâmica das casas tradicionais do candomblé baiano, desde o início do século XX, com a ida a África de figuras importantes do meio afro-baiano como Martiniano Eliseu do Bonfim e a segunda Iyalorixá do terreiro da Casa Branca Obá Tossi e do Pai Adão, famoso babalorixá do Xangô de Pernambuco.
No eixo Rio de Janeiro/São Paulo o empreendimento de busca a uma África qualificada, [18] produtora de bens simbólicos, foi levado a cabo nas duas últimas décadas do século passado passando a conferir maior prestígio que a viagem à Bahia[19], considerada no eixo sudeste como centro da tradição afro-brasileira.
Então, muitos sacerdotes, sulistas e alguns baianos, partiram em destino a Nigéria e ao Benim, no afã de conhecer mais sobre os Orixás. Teve forte influência neste processo de redescoberta da África a leitura dos livros de Verger que se transformaram em “best-seller” entre uma camada do povo-de-santo (especialmente o seu clássico Orixás editado pela Corrupio em 1981). Ao receber estudiosos africanos no Brasil, Verger também facilitava os contatos destes como o povo-de-santo.
Segundo Braga também deve ser levado em conta no processo da reafricanização ou, nos seus termos, “nagoização” o papel e o compromisso do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, criado por Agostinho da Silva em 1959. A partir da década de 60, o CEAO passou a desenvolver uma série de atividades numa perspectiva de aproximação cultural entre o Brasil e África, principalmente os curso de língua e cultura Iorubá (Braga;1995:49). A implantação do CEAO representou a efetivação da proposta antecipadora de Édson Carneiro, que na década 1920, vislumbrava a criação de um Instituto Afro-Brasileiro na Bahia.
O CEAO realizou obras que iam ao encontro às aspirações dos segmentos intelectualizados dos candomblés baianos (Risério;1995:58-9).A principal iniciativa do centro veio a ser a implantação do curso de língua Iorubá implantado, atendendo aos interesses dos congregados dos candomblés" e ao desejo, que tinha de reforçar os tênues laços diretos que conservaram com a África"( ibd;59).
Ministrado pelo professor nigeriano, Lasebikan, foi freqüentado em sua maioria por gente-de-santo, pessoas ligadas ao candomblé que “certamente redefiniram muitos dos seus conhecimentos a partir da aprendizagem de uma língua que, na sua dimensão arcaizante e sagrada, é utilizada no cotidiano de suas práticas religiosas.” (ibd;1995:49).
Além do curso de ioruba o CEAO incrementou um intenso contato com a comunidade negra, em especial com o povo-de-santo, através de cursos de kikongo, de história e cultura dos afro-brasileiros e dos povos africanos (Bacelar; 2001:135)[20].
Do mesmo modo, o CEAO possibilitou o intercâmbio Brasil - África em esfera oficial. Nesse empenho um grupo de pesquisadores tomou rumo à Nigéria. Risério acredita que o sonho de Martiniano-Ojeladê de incrementar os contatos entre Brasil e África teria sido contemplado com essa viagem de pesquisadores, estudantes e professores no anseio de aprofundar os conhecimentos sobre o continente africano.
Em suma, as recriações e reinvenções das tradições dos terreiros de candomblé, também obedeceram às estruturas econômicas da sociedade dividida em classes a qual estavam inseridos.
Mesmo nos candomblés mais ortodoxos e ostensivamente zelosos de suas origens africanas, as mudanças foram inevitáveis, não deixando de existir, “factual e nítido, o processo das modificações estruturais causadas pelas acomodações situacionais; pela diminuição ou mesmo supressão de algumas prescrições rituais, sobretudo aquelas referentes à duração de período de reclusão ritual e interdito comportamentais e por vários outros fatores de ordem sócio-econômica” (Costa Lima; 1977:11) O tempo de reclusão iniciática, conventual, foi diminuído em razão das pressões econômicas fazendo atenuar o rigor da norma introdutória na vida secular do neófito[21].
Seria a presença da África qualificada na manipulação de traços genéricos, em maior ou menor grau que definiria os cultos afro-brasileiros relacionados à noção de tradicionalidade. Foi em nome dessa tradição originária que fez com que a visibilidade desses cultos tidos como ilegítimos e misturados, fossem ofuscados esquecidos por uma tradição de cientistas sociais.
A geração de intelectuais que iniciaram suas pesquisas nos anos 70, levou a sério não somente a denuncia desse compromisso, vindo a colaborar na defesa dos cultos excluídos, aqueles sincreticos (Birman;1997:82), os que criam novas tradições com o Terreiro de Pai Beto de Oxalá que cada vez mais se empenha em adaptar seu terreiro às exigências do mundo moderno.
Em uma das festas em que estive presente, com um grupo de alunos do curso de formação de guias de turismo, o terreiro contava com um recurso sonoro inovador para uma casa-de-santo que se classifica como nagô tradicional na Bahia: ao lado dos atabaques encontrava-se uma caixa de som amplificada e um microfone que era revezado pelo grupo de solista. Assim acabo concordando com Hobesbawn que “toda tradição é uma invenção”, que visa a atender a estruturas estruturadas e estruturantes do diversos poderes simbólicos como diria Pierre Bourdieu.
Reinvenção da tradição
Pela categoria de tradição entende-se um conjunto de sistemas simbólicos que são passados de geração a geração, que tem um carater repetitivo. Repetição significa atualização dos esquemas de vida. Em outros termos, pode-se dizer que a tradição é uma orientação para o passado, de modo que o passado tem uma significativa força e influência sobre o curso das ações presentes. A tradição também se reporta ao futuro, ou melhor como organizar o mundo para o tempo futuro.
Segundo Weber (1991:148) uma das formas de dominação em uma sociedade é calcada na tradição, a crença na santidade das ordens e dos poderes existentes desde sempre, cujo conteúdo não se tem à possibilidade de alterar, funcionando como o cimento que une as ordens sociais. Porém, salienta Sahlins (1987), os sistemas simbólicos não devem ser pensados como estáticos, e sim dinâmicos, atendendo ao curso da história para se reproduzirem. Conclui que “as coisas devem preservar alguma identidade ou o mundo seria um hospício” (1987:190). Desse modo, em toda mudança vê-se também a persistência da substância antiga: a desconsideração que se tem pelo passado é apenas relativa. É por esta razão que o princípio da mudança se baseia no princípio da continuidade (Sahlins, 1987:190).
Assim, devemos entender a categoria tradição com um campo que envolve um ritual, o que confere o status de integridade, como um meio prático de garantir a preservação calcado em modelos que podem ser histórias míticas, reais e reinventadas, dando conta dos múltiplos processos de resemantização e de ressimbolização no curso da historia dos atores sociais. Em suma, a tradição passa a ter um carater normativo, relacionados aos processos interpretativos por meio do qual o passado e o presente são conectado para ajustar o futuro. Desse modo, a tradição passa a representar não apenas o que é feito numa sociedade, mais o que deve ser feito no próprio processo de mudança Como observa o historiador Eric Hobsbawn: “toda tradição é uma invenção”, que surgiu em algum lugar do passado podendo ser alterada em algum lugar do futuro.
As tradições estão sempre mudando “mas há algo em relação à noção de tradição que pressupõe persistência; se é tradicional, uma crença ou prática tem uma integridade e continuidade que resistem aos contratempos e as mudanças. Desta maneira as tradições tendem a ter um carater orgânico: se desenvolvendo e amadurecendo, ou enfraquecendo e “morrendo”. Por isso, os agentes sociais “os guariães” os mediadores do sagrado realçam constantemente os elementos constitutivos da tradição: a integridade, ou a autenticidade assegura Giddens, entretanto observa Sahlins que:
Para compreendermos os movimentos culturalistas contemporâneos, as lições da sabedoria boasina tradicional poderiam ser tomadas da seguinte forma: a defesa de uma tradição implica alguma consciência, consciência da tradição implica alguma invenção, a invenção da tradição implica alguma tradição ( Sahlins apud Birman, 1997: 89).
Entrementes, não foi enquanto invenção que a categoria nativa de tradição se cristalizou e naturalizou no campo acadêmico do inicio do século XX, mas sim em termos de uma cultura inerte ao tempo, não dando conta da historicidade, da posição dos sujeitos na estrutura do campo religioso e da subjetividade desses atores.
Assim, faz-se necessário observar que os conceitos e categorias são produzidos pelos atores sociais, para atender as expectativas de suas próprias ações e a necessidades de relações significativas em suas vidas. Logo, no campo do candomblé os sacerdotes mais atávicos as suas tradições originárias não reconheciam como legítimos os cultos misturados, acentuando como legitimo os candomblés Keto.
O debate da tradição versos invenção
Na década de 60 do século XX, inicia-se um largo processo migratório do Nordeste para as grandes áreas industrializadas no Sudeste do país. Com isso, migram alguns sacerdotes baianos da tradição dos candomblés que passam a empreender suas marcas nestas cidades.
Prandi parte do suposto de que o candomblé começou a penetrar no bem estabelecido território da umbanda, e vários sacerdotes umbandistas passaram a se iniciar no candomblé. Acentua este autor que neste momento da história brasileira, as classes médias urbanas buscavam traços culturais que poderiam ser tomado como as raízes originais da cultura brasileira. Desse modo, intelectuais, estudantes, artistas participavam dessa empreitada, que tantas vezes foi bater à porta das velhas casas-de-candomblé da Bahia (Prandi; 1996:16).
Na Bahia, como já descrito antes, os candomblés, cada vez mais, almejavam ao ideal de pureza de suas nações, severamente exigidos pelos sacerdotes, desde o tempo de Martiniano, Mãe Menininha do Gantois, ainda uma nova Iyalorixá, no tempo em que concedeu entrevistas a Ruth Landes (Pierson; 1971 Landes; 1967). Ambos endereçavam as suas críticas especificamente para os sacerdotes que introduziam na prática religiosa o culto dos Caboclos, e os cultos de liderança masculina, salvaguarda de dois pais-de-santo amigos de Menininha, a quem essa mostrava respeito, mas ambos eram fervorosos na defesa do matriarcado como um sinal diacrítico da tradição dos candomblés nagô.
Birman, no seu livro Fazer Estilo criando Gênero (1995), parte do suposto de que a liderança feminina nos cultos afro-brasileiros expressa uma fidelidade à tradição, revestindo de um minucioso esmero o culto dos Orixás e contrastando em relação a alguns terreiros liderados por pai-de-santo. Birman acredita que os terreiros
Dirigidos por homens apresenta uma “abertura” para fora mais evidente: as festas incluem um número maior de pessoas estranhas ao cotidiano da casa, há um caráter mais “mundano” nas atividades: o luxo, as fofocas, o clima geral é de um acontecimento altamente excitante e envolvente. Terreiros dirigidos por mulheres são mais fechados: o seu núcleo defende-se da “poluição” que vem de fora, há uma ênfase nas fronteiras da casa e na exigência de fidelidade de seus participantes (1995: 56).
No limite, faz-se preciso relativizar, com muito cuidado, essas afirmações de Birman quando se trata da Bahia, no máximo podendo tais afirmações ser validas para o eixo Rio/São Paulo. É sabido da fama de pais-de-santo que mantém a tradição aos Orixás com a mesma fidelidade dos seus ancestrais.
Entretanto, sabe-se também que em muitas casas lideradas por homens estão presentes tanto a mundanidade (as fofocas, o luxo, o sexo) quanto a moralidade da face feminina, que também não escapa do mesmo jogo mundano dos candomblés masculinos. A questão de gênero não pode ser o definidora da tradição, pois acabaria por ter a mesma visão etnocêntrica dos velhos sacerdotes, para a cristalização de um ethos ideal.
Como já dito anteriormente, a antropóloga Beatriz Dantas assevera que essa construção ideal típica jeje-nagô teve grande influência dos intelectuais que realizaram as suas pesquisas nas casas-de-santo tradicionais baianas da nação Keto, calcada no matriarcado. A idéia de pureza foi, portanto, idealizada pelos pesquisadores concomitantemente com a idéia de tradição, e relacionada com a história de cada casa-de-santo na preservação dos costumes e valores dos ancestrais africanos.
A noção de pureza dos cultos afro-brasileiros é facilmente reconhecível nas analises da literatura antropológica, desde o inicio do século XX até a década de setenta. Os intelectuais buscaram uma correspondência entre a valorização da tradição africana e a valorização de uma tradição anti-sincretica, “pura”, que remetia a uma perspectiva intelectual de pensar o afro-brasileiro, quanto a uma prática religiosa mantidas pelas casas-de-santo tradicionais na Bahia. Em nome de uma tradição originária não se reconhecia como legítimos os cultos misturados.
Por sua vez, a geração de intelectuais que iniciou seus trabalhos nos anos 70, deste mesmo século, levou a sério não somente a denuncia desse compromisso, como também veio a colaborar no sentido de defender os cultos excluídos, aqueles supostos sincréticos (Birman; 1995 :82).
Desta forma, inaugura-se uma analise mais atenta para as transformações das religiões afro-brasileiras, identificando uma nova morfologia social dos terreiros de candomblé. Os cultos populares antes desprezados pela tradição intelectual ganham um “lugar ao sol”, assim como outras vertentes das religiões afro-brasileiras, tais quais a umbanda, as casas-de-santo da nação Angola. Isto se deu na tentativa de entender melhor o fenômeno do sincretismo e o caráter dinâmico da cultura ao reinventar a tradição.
Na cidade de Salvador é significativo o número de novas casas-de-santo de outras vertentes não tão próximas do modelo ideal “purista”, e das casas consideradas tradicionais que, aos poucos, foram se mostrando “abertas” para dialogar com a diversidade de práticas magicas ofertadas no mercado religioso.
O crescimento de um corpo de especialistas do candomblé se dá devido ao fato como de que o exercício de
sacerdote qualificado no candomblé representa a possibilidade de exercer uma profissão que, nascida como ocupação voltada para os estratos baixos de origem negra, passou recentemente, a compor os quadros dos serviços de oferta generalizada a todos os segmentos sociais, a reivindicar o status de uma profissão de classe média (Prandi;1996 :36).
Muitos dos novos sacerdotes não passam pela iniciação, operador de distinção que, a rigor, classifica os indivíduos como pertencentes à religião dos Orixás. Outros ainda não completaram as obrigações prescritas de um, três e sete anos, especialmente esta última, que finaliza o processo iniciático ou, como é mais conhecido, não tomou o deká[22], termo advindo da nação Angola e, adaptado a outras nações, concernente ao recebimento do cargo de mãe ou pai-de-santo [23].
Esses líderes são classificados pelo povo-de-santo, desde a época das pesquisas de Bastide na década de quarenta do século XX, como improvisados clandestinos, feitos dos pés para a cabeça, pais e mães-de-santo de eke.
Os sacerdotes “clandestinos” se valem, para explicar sua falta de iniciação religiosa formal, de clichês racionalizados da sua deficiência, dos quais o mais comum é dizerem que “foram feitos de berço” ou de “nascença”, isto é; nasceram feitos. Observa Costa Lima (1999) que a expressão talvez seja mais empregada porque em sua ambigüidade pode fazer com que se julgue que a mãe ou o pai-de-santo “feito de berço”, ou de “nascença”, tenha nascido na camarinha, durante a iniciação, considerando-se estes como àbikú [24] (Costa Lima; 1999: 52)[25].
Essas reinvenções de tradições afro-brasileiras estão diretamente ligadas ao dinamismo cultural da sociedade moderna, que expõe seus produtos no hipermercado dos bens simbólicos. Mesmo reinventada a tradição acaba funcionando como ingrediente necessário no discurso desses novos sacerdotes das religiões afro-brasileiros.
Esses candomblés classificados por mim de “modernos”, no sentido de terem se instalados e consolidados recentemente em relação àqueles tradicionais, os mais antigos, buscam selecionar determinados sinais diacríticos de pureza (autenticidade, filiação a um terreiro tradicional) para funcionar como demarcadores de uma tradição, que a todo instante é reivindicada para aceitação no mercado religioso.
Outra mudança recorrente nesses terreiros “modernos” é a troca da nação, do modelo Angola para o Keto, e nunca ao contrário, sendo este um expediente eficaz para alguns dos sacerdotes, que buscam espaço no mercado religioso. As mudanças levam ao abandono de elementos da tradição iniciada, em favor da outra mais valorizada no campo religioso
Prandi (1991) constatou em suas pesquisas sobre os candomblés que as constantes mudanças dos sacerdotes:
são de iniciativa e arbítrio do pai ou mãe-de-santo, que, contudo, estrategicamente, sempre afirmará tratar-se de desígnio do Orixá, que mostra seu desejo através do jogo de búzios, o qual só pode ser jogado e interpretado exatamente pelo pai ou mãe-de-santo, o chefe da casa (Prandi;1991:110).
As migrações racionalizadas ocorrem ainda no plano da filiação. Existem filhos-de-santo que ao se desentenderem com seus iniciadores buscam completar ou terminar as obrigações rituais com outros pais e mães-de-santo. Alegam varias razões para sua transferência, podendo ser o caso de seus Orixás terem sido iniciados na nação errada, ou, mesmo, terem feito o santo errado. Alguns, nesta estratégia de legitimação, buscam líderes que dispõem de um carisma no mercado religioso, uma visibilidade na mídia ou, até mesmo, por uma afinidade com o sacerdote escolhido.
Alguns dos novos líderes que migram de um terreiro a outro, de nação a outra, em muitos casos se mostram abertos para o diálogo com outras práticas, advindas do esoterismo, da cabala e da própria umbanda. Rituais, tido no tipo ideal jeje-nagô como depurados, são realizados em suas casas, particularmente as sessões de giro de Exu[26].
Considerações Finais
É significativo atentar para o fato de, atualmente, existir um conflito entre os sistemas de crenças afro-brasileiros, que vem sendo postulado na concorrência dos bens simbólicos. Assim, pais e mães-de-santo procuram uma incessante legitimidade, referindo sempre na genealogia de seus terreiros alguma ligação com os terreiros tradicionais ou refiliações com líderes de grande reconhecimento pela sociedade exterior à religião. Os mecanismos de legitimação de alguns desses terreiros envolviam e continuam a envolver a adoção de ebômis das casas importantes que assumem papel de prestígio na hierarquia da casa (Costa Lima;1987:42), garantindo um atestado de competência e legitimidade nos conhecimentos, detentores de "fundamentos"; distância que os separam dos outros. A competência e o conhecimento se somam um conjunto de estratégias articuladas pelos pais e mães-de-santo que lhes confere reconhecimento.
Tendo em vista que na atual sociedade brasileira a eficácia e a competência são os indicadores importantes para adesão dos indivíduos a uma agência religiosa, seja a um terreiro de candomblé, ou a uma igreja neo-petencostal. Os indivíduos, atualmente, apegam-se na promessa e na possibilidade de administrar o seu próprio destino, co-existindo sempre a crença de alcançar respostas significativas para os acontecimentos adversos apresentados na vida cotidiana, vendo, assim, na competência explicitada, por diversos canais de divulgação, do sacerdote das religiões afro-brasileiras a possibilidade de encantar o mundo, torná-lo mágico e desse modo, compreende-lo, aceitá-lo, ajustá-lo as normas impostas pelos infortúnios, apresentados na vida cotidiana, estabelecendo uma relação de casualidade dos problemas apontados a uma dimensão mágica, recorrendo, no limite, aos auxílio de profissionais com agências qualificadas, que travam uma luta concorrencial no mercado dos bens simbólico, na busca de uma grande demanda de clientes e fiéis.
No cenário atual da nossa sociedade o cálculo, a probabilidade e previsibilidade são formas de enfrentamento do indivíduo com o seu ( mal) estar no mundo. Os indivíduos são conduzidos a racionalizarem as suas vidas pelas ofertas expostas nos balcões do mercado religioso, um mosaico de formulas mágicas, de doutrinas esotéricas, de medicinas paralelas, de psicanalismo e todo um amplo receituário de modos de vida e superação dos obstáculos, intervindo a um favorável desfecho.
Assim elabora-se um cenário, re-encantando o mundo, racionalizando um repertório de signos disponível e eficaz, no intuito de garantir e prover ideologicamente os indivíduos a uma segurança psicológica e re-elaborar suas identidades, possibilitando a manifestação dos “eus” contidos e reprimidos nas sociedades modernas. Nessa trama simbólica almeja-se metáforas e arquétipos satisfatórios ( signo astrologico e ancestralidade mítica ) capazes de prover aos indivíduos a alteridade para pensar a si próprio.
No Brasil, em particular na Bahia, os indivíduos racionalizam suas condutas recorrendo muitas vezes a recursos religiosos e eficazes, desta maneira as religiões afro-brasileiras, promotora tanto de uma auto-identidade, quanto uma identidade comunitária, na eficácia dos métodos e o discurso da tradição produtor de legitimidade. Desta maneira, na atualidade o candomblé passou a compor ao elenco de oportunidade de enfrentamento do mundo ao mesmo tempo passou a ser mercadoria das camadas economicamente privilegiada (branca) e objeto de análise (desde do início deste século) dos antropólogos, sociólogos, historiadores e psicólogos, os signos religiosos tornaram objetos exóticos pelos órgãos de turismo e cultura do estado da Bahia e da cidade de Salvador.
É justamente nesse cenário de busca pelo exótico, pelo encantamento do mundo, que emergem novos lideres religiosos que prenunciam em sua careira sacerdotal a possibilidade de ascensão, tendo em vista que cada vez mais na sociedade brasileira se aceita o feiticeiro e sua magia, abrindo desta forma canais de divulgação em emissoras de TV e espaços específicos em shopping center, para prestação de serviços. Com este prestigio e reconhecimento esses lideres “modernos” e “ecléticos” ingressam na competição do mercado de trabalho por deter uma competência real ou atribuída pela agência formadora. ( Prandi; 1993:106)
Em suma, no novo contexto dos candomblés baianos, não é apenas o ideário normativo da tradição do modelo jeje-nagô que assegura a legitimidade aos pais e mães-de-santo entre o povo-de-santo, o que esta em jogo é a competência no campo religioso do pai e mãe-de-santo frente às expectativas coletivas que almejam encantar as suas vidas. Isto é; esperam uma operacionalização do campo sagrado para atender as aflições e tormentos apresentados no dia-dia. Outro ponto destacado entre o povo-de-santo que funciona como um demarcador de legitimidade é o poder carismático do sacerdote, o domínio de uma linguagem que agrega em torno de si os seus fiéis e uma vasta clientela “carismaticamente dominados” (Weber, 1994, 154) e a divulgação de suas qualidades especiais na manipulação do mundo mágico.
Durkheim (1989) aponta para o fato de que os clientes não fazem parte da religião, por não se constituírem como base efetiva da “comunidade moral” (a igreja), tendo apenas uma relação utilitarista com serviços prestados pelos sacerdotes, entretanto, numa perspectiva weberiana, mesmo a clientela sendo fugaz, ela tende a reforçar o poder do sacerdote, enquanto um burocrata, no cumprimento de modo satisfatório de suas funções. Assim, a clientela torna-se, então, objeto de influência decisiva na legitimação do sacerdote, que tende a sistematizar as suas formulações mágicas, o seu conhecimento e sua eficácia nos tratamentos de aflições e tormentos apresentados (Weber;1994:319).
Os pais e mães-de-santo nesse “caleidoscópio” do mundo moderno se viram obrigados a racionalizam as suas práticas; o jogo de búzios, as consultas privativas, ou os ebós aos seus clientes que cumprem uma função importante para o candomblé como religião. Não obstante, incide Prandi que a clientela procura o candomblé pelos serviços mágicos ofertados, no encantamento desse mundo através dos ritos sacrificiais. A constante procura pelos serviços das religiões afro-brasileiras se dá no afã, na curiosidade dos indivíduos saberem qual o seu “Orixá de cabeça”, ou na busca de uma resolução imediata das aflições, privações e incertezas. Essa clientela não é diferente das que procuram “kardecismo, pentecostalismo, umbanda a depender da classe social psicanálise e outras modalidades terapêuticas” (Prandi; 1993: 26-7).
Nesse hipermercado, ou melhor nesse mosaico de bens religiosos são inúmeros os pais e mães-de-santo apontados pelo povo-de-santo baiano, como grandes provedores de "axé", pelas suas competências explicitadas na eficiência dos serviços prestados pelas suas divindades os Caboclos, Exus e Pomba Gira a clientela. Sendo assim, os pais e mães-de-santo dos candomblés que se mostram com uma abertura para socializar o “Outro”, nesse caso o Outro são as representações e práticas umbandistas, particularmente, o culto dos Exus abrasileirados. Esses modelos de candomblés distante do ideal normativo das casas ortodoxas respondem às expectativas da clientela, que sem um cálculo mecânico ajustam-se de imediato às exigências inscritas no mercado religioso, como já dito na resolução das aflições e tormentos dos fieis, saúde, problemas financeiros e questões amorosas. Em suma, os pais e mães-de-santo "ecléticos", "modernos" garantem nas suas agências religiosas a legitimidade, tirando proveito do capital simbólico de reconhecimento frente aos devotos assim como a toda sociedade.
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[1] A obra de Ruth Landes, Cidade das Mulheres, cuja abordagem é a vida dos candomblés baianos da década de trinta, do século XX, e o destacado papel das mulheres negras dentro dos terreiros e na vida fora deles. O livro permaneceu por algumas décadas empoeirado nas estantes, ficando apenas circulando entre os leitores especializados nos estudos afro-brasileiros, mesmo assim visto com uma certa complacência. Não obstante, o livro era apresentado como uma reminiscência de sua passagem pelo Brasil do que propriamente o resultado de sua pesquisa. O livro recebeu pouca atenção favorável saindo logo de circulação, contrariamente a outros trabalhos de autores estrangeiros (Fraizer, Melville Herskovits, Donald Pierson), que estiveram no país neste mesmo período. Foi com a publicação da segunda edição de Cidade das Mulheres, em 1996, nos Estados Unidos, que o livro começou a recapturar atenção acadêmica, pelas antropólogas feministas norte-americanas que passavam a rever a história da antropologia, despertando um interesse sobre a ótica das relações entre gênero e raça. Uma das razões pela qual seu livro foi excluído dos circuitos acadêmicos. Landes foi vitima de uma perseguição masculina a uma mulher que tinha a pretensão de afirmar existir uma cidade das mulheres num mundo dos homens. Landes acabou por ingressar num campo já minado por dissensões políticas e metodológicas. Segundo Corrêa, as críticas de Artur Ramos quanto às de Melville Heskovits se assentam em três pontos; o primeiro pelo fato já mencionado o seu ingresso num campo objetivado pelos homens, ao passo que mantinha uma relação amorosa com seu colaborador Edson Carneiro[1], segundo a sua ênfase nas relações raciais, num momento que se enfatizava as explicações dos fenômenos sociais por explicações culturais, terceiro “por sua descrição, destoante das descrições canônicas, a respeito que as mulheres tinham no candomblé”[1]. Segundo Healey, a resistência que Landes encontrou se assentava na questão de gênero: primeiro a resistência que ela havia encontrado para realizar a pesquisa de campo e depois para publicar seu trabalho.
[2] Segundo Édson Carneiro, em seu tempo, nas cassas tradicionais do modelo Keto, era possível “ver cantar e dançar para os encantados Caboclos” (1961:62).
[3] Alguns autores, como Carneiro afirmam ter presenciado cânticos e danças aos caboclos nos terreiros do Engenho Velho e Gantois (1978:54). Alejandro. Frigerio (1983) citado por Teles dos Santos (1995) afirma a existência do culto de Caboclos no Axé Opô Afonjá embora na forma de um culto privado. Tomei como surpresa essa informação por ter um contato com esse terreiro. Sabemos que em uma das festas ao Orixá Oxossi há a presença de muitas frutas, talvez o fato de Oxossi ser o dono das matas, habitat dos caboclos e a presença de frutas levou ao pesquisador identificar equivocadamente a festa como um ritual de Caboclo.
[4] Teles (1995), se preocupou em analisar o culto dos excluídos Caboclos pela ortodoxia do povo-de-santo como pelos intelectuais que sempre privilegiaram as casas nagôs. Teles dos Santos postula que nos dias atuais existe um reconhecimento da importância dos Caboclos nos candomblés baianos pelos pais e mães-de-santo dos terreiros ortodoxos, que não mais fazem as severas críticas como nos tempos de outrora, à presença do Caboclo no candomblé nagô, entretanto, insistem sobre a pureza de suas casas. (Teles dos Santos, 1995:23).
[5] Sobre a vida do professor e Babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim, Ojelade ver Costa Lima, Vivaldo. O candomblé da Bahia na década de trinta. In: Oliveira, Waldir Freitas de & Costa Lima (orgs.). Cartas de Edson Carneiro a Arthur Ramos: de 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. São Paulo: Corrupio, 1987. Ver também Braga, Júlio. Na gamela do feitiço. Salvador. Edufba. 1995.
[6]A CONTOC foi um movimento organizado por lideranças religiosas da África dos Estados Unidos, do Caribe e da América do Sul, cujos objetivos era a unificação da tradição dos Orixás. Sendo realizado a primeira em Ilé-Ifé, na Nigéria, a Segunda no Brasil, a terceira em Nova York e outra em Ilé Ifé, ambas em 1986. Em 1987 ocorreu no Ilé Axé Opô Afonjá o preparatória para a Quarta, no qual se criou o INTECAB (Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-Brasileira) e a quarta ocorreu em Nova York em 1988 e 1990 em São Paulo ( Gonçalves;1995:269).
[7] Rodrigué nos informa que o acarajé comida de Oyá-Iansã, rainha dos ventos e dos movimentos rápidos, representa os filhos gerados por ela e não criados, mãe dos mortos, mãe de Egungun. “Fala do feto ainda em estado de formação, ainda envolvido no sangue” (Rodrigué;2001:96)
[8] Os seus livros são Meu tempo é agora, Dai aconteceu o encanto esse último em co-autoria com sua filha-de-santo Cléo Martins- Agbeni Xãngô. Cléo Martins organizou o livro comemorativo dos sessenta anos de iniciação de Mãe Stella, Faraimará - O caçador traz alegria (1999) e publicou os livros Ewa: Senhora das Possibilidades (2001), Iroco: O Orixá da Árvore e a Árvore do Orixá (2002).
[9]A transmissão do saber no candomblé obedece à lógica da palavra falada, “boca ouvida” , nos momentos específicos a cada filho-de-santo. A palavra por si só é detentora de força vital, o axé. O conhecimento é veiculado na observação sistemática e nunca na lógica de perguntas e respostas, é preciso estar atento a tudo, e nunca perguntar mas esperar que venha lhe explicar. A oralidade constitui um universo concreto revelador das principais proposições históricas de uma dada comunidade de terreiro, capaz de explicar a organização do mundo e da realidade, bem como, práticas sociais globais, a captação, exercício, acúmulo, e transmissão do conhecimento, segundo valores civilizatórios próprios nascidos de sua identidade profunda. Assim, cada evento decisivo na comunidade de terreiro de candomblé e nela perpetuado sob a forma de valor decisivo constitui o som de uma palavra cantada ou proferida “boca ouvida” nos estágios de iniciação e na vida cotidiana dentro do terreiro. Designa-se dessa forma sob o termo geral da palavra proferida ou cantada o conjunto de forças vitais existentes e que a explica no tempo e no espaço. Diante desses pressupostos, é de se considerar que a oralidade com a utilização da voz com maior ou menor freqüência de vez que não é rara a pausa, o silêncio, adquire um grande significado dentro da estrutura candomblé. A suposição é de que a oralidade pode exercer uma influência sobre o alvo de sua atenção o qual, por sua vez possuiria sua própria palavra ou energia vital e reagiria diante dela. É um processo dinâmico, portanto, que supõe interação (Leite; 1986).
[10]Postura assumida e mantida isoladamente pela Iyalorixá Stella Azevedo, entre as outras signatárias Iyalorixás que assinaram o documento (Consorte;1999).
[11]Esse dialogo entre antropólogos e acadêmicos, mediado pela escrita, tem possibilitado muitos sacerdotes na participação efetiva nas pesquisas etnográficas sobre o candomblé, seja na elaboração de prefácios, ou na avaliação que faz o sacerdote, para autorizar o uso de determinadas informações. Na minha pesquisa sobre o Orixá Exu submeti o texto final tanto ao Pai Beto quanto a minha Iyalorixá, para ambos fazerem correções de certas informações que pudessem vir a ser consideradas como awô (segredo), assim como opinarem em certas alterações. Sobre esse assunto ver Gonçalves que dedica um capitulo de sua tese o Antropólogo e sua magia (2000) a essa temática.
[12]Neste debate Gonçalves (1998) parte do suposto que cada grupo tem uma noção diferente do que seja o retorno, muitas vezes pode ser adesão do antropólogo a casa, para outros pode ser a contribuição financeira, a divulgação do terreiro ou a participação nos projetos sociais e políticos do grupo (ibd;55)
[13]Nesse sentido, surgem outras formas de sistematização racional do candomblé para se auto-representar, a exemplo da criação do CEPTOB (Centro de Estudo e Pesquisas das Tradições de Origem Banto) pelo Tata de Inquice, Laércio Sacramento, cuja finalidade do centro é resgatar e difundir a tradição banto, desvalorizadas pelo domínio nagô. Propõe o pai-de-santo uma reação ao “nagocentrismo”. Fato curioso foi à celebração do sacramento do casamento aos moldes de uma tradição criada em seu terreiro Manso Kilembekweta Lemba Furaman, em Jauá, na Estrada do Coco, no dia sete de novembro de dois mil e hum (nas palavras do pai-de-santo “o adepto do candomblé , tem de procurar o templo de sua própria religião para se batizar, casar ...”[13]). Surgiu, também, em Salvador o ACBANTU – Associação Cultural e Preservação do Patrimônio Bantu-, cujo objetivo é o estudo e transmissão da cultura bantofone, através de oficinas, palestras tanto nos terreiros de candomblé, quanto nos espaços acadêmicos Essa temática da reação “nativa” ao nagocentrismo criando por sua vez um bantocentrismo, certamente requererá uma analise mais detalhada no futuro.
[14] O povo-de-santo vive, a todo instante, vigilante para não caírem no ejó, a fofoca, ou como prefere Braga a “crônica da novidade”. Eles se esforçam como dizem: “para não terem os seus nomes na bandeira de Tempo”. Referem-se a bandeira branca que nos candomblés da nação Angola tem como emblema do Inkisse Tempo. Geralmente, a bandeira é colocada numa vara de madeira bastante grande que a qualquer distância possa identificar que ali é um terreiro de candomblé.
[15] Sobre o assunto: Ver Braga (1998: 25).
[16] Casos como esses são, certamente, muito comentados. Uma das atividades prediletas por muita gente-de-santo é a crítica a outros terreiros, conforme já comentado, desde o comportamento do líder, sua vida pessoal confundida com sua função de sacerdote, os ritos dos terreiros, a roupa dos Orixás, os toques e cantigas supostamente cantadas erradas, demonstração de incompetência, todos esses elementos e muitos outros são motivos para fazer críticas irônicas e ferozes. Segundo Pai Beto são vários os casos de xoxação. Ele comenta que um dia estava em seu quarto, em uma das festas em sua casa, quando ouvia das gretas da janela amigos dele comentando sobre a ostentação das festas em sua casa. Outro caso de xoxação comentado por ele, chateado, ligava-se ao fato de uma pessoa de cargo inferior ao seu, e mais novo de santo, um ogã que ocupa em um outro terreiro o cargo de pai-pequeno, ter sorrido “de canto”, ironicamente, e feito comentário com outros próximos a ele, por que o Pai Beto estava cantando para o bolo. Os terreiros de candomblé tradicionais, mais atávicos as suas origens também são alvos de “xoxação”, fala-se da roupa da mãe-de-santo, da vida pessoal, das cantigas etc., mais os maiores alvos são os candomblés “modernos” apesar de ter um grande público, especificamente naquelas festas que se tem muita bebida como nas votivas a Exu, com o transe nos filhos-de-santo.
[17] Voltaremos a esse ponto nos próximos capítulos.
[18]No caso paulista observa Gonçalves (1995) que com a publicização dos candomblés, proveniente da adesão de um número significativo de indivíduos de classes sociais mais favorecidas, esses indivíduos tem levado a cabo a empreitada de busca a uma valorização ostensiva a África, com as freqüentes viagens à Nigéria e ao Benin, cuja finalidade é o resgate dos conhecimentos através dos Congressos ou visitas aos templos dos Orixás de lá, ou para dar obrigação e receber títulos honoríficos. Esta ida a África permite uma maior visibilidade do sacerdote e lhe garante um coroamento em sua carreira sacerdotal (ibd;271).
[19] Diferentemente, os candomblés tradicionais baianos não se mostram com grandes preocupações em ir a África na busca de raízes, na medida que esses terreiros se consideram as raízes.
[20] Com a criação do CEAO observa Risério, se criou um campo magnético cujos efeitos se estendem até os dias atuais. A exemplo do “Projeto terreiro" da Fundação Gregário de Mattos, em 1985, que teve a iniciativa inédita no campo da administração pública do país de uma política de preservação e recuperação dos terreiros de candomblé,” quando até então a ação estatal se reduzia à preservação de monumentos de pedra e cal da etnia dominante"(Risério;1995:60). Do mesmo modo, que se criou o tombamento aos terreiros fundantes pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional). O que também possibilitou a implantação das casas do Benin e de Angola.
[21] Nos “tempos antigos”, a reclusão no terreiro durava entre seis meses e um ano, o que limitava as atividades econômicas dos filhos-de-santo (ibd; 1977:11).
[22]Segundo Costa Lima a entrega do decá nem sempre é dado automaticamente, freqüentemente os sacerdotes recusando-se a entregar o cargo de pai ou mãe-de-santo. Na sociedade moderna, em que se diminui a interação face a face, os filhos-de-santo por razões de ordem econômica vão ao terreiro com mais freqüência no período das obrigações, não lhe conferindo competência para exercer o sacerdócio. O sábio sacerdote expõe ao seu filho-de-santo a recusa atribuindo a decisão ultima dos Orixás. Caso não haja uma aceitação da recusa por parte do filho-de-santo, este provavelmente ira “fazer a obrigação em outra casa’, geralmente de um líder rival de sua mãe que prazerosamente aceito o encargo e completa a obrigação de ebômi, entregando-lhe o ambicionado decá " (Costa Lima; 1999: 47).
95.Observei esse ritual no terreiro de Pai Beto, na entrega do deká a Fomo de Oyá que consistiu em uma entrega de uma cabaça cortada ao meio (em alguns terreiros em vez da cabaça é uma peneira) com os objeto relacionados ao ato da iniciação dos futuros filhos-de-santo “feitos”, os objetos são os búzios para implantação da prática divinatória, uma navalha, e o rumgebe (colar de miçangas marrom avermelhado com coral vermelho e uma conta azul - segui).
96Àbikú são espíritos que tivera diversas aparições, julga-se vir ao mundo por um breve momento para voltar ao mundo dos mortos, orum, várias vezes. Maior detalhes sobre os àbikú sobre os àbikú ver Verger. Pierre- A sociedade Egbé Orun dos Àbikú, as crianças nascem para morrer várias vezes. In: Afro-Ásia, N.14 CEAO-UFBa.1983.
[25]Muitos dos líderes não tão ortodoxos utilizam-se do expediente fotográfico como forma de registrar o ato de iniciação, a fim de garantir legitimidade, sobre a possível contestação de sua iniciação.
[26] As sessões de giro de Exu ou as festas, paulatinamente, vêm tendo um colorido umbandista. Geralmente, as festas tem início com cânticos em língua Angola e os atabaques são tocados com as mãos, traço distintivo do toque Angola em relação ao Keto, que toca-se com varinhas de araçazeiro, aguidavis. Saúda-se todos os inquiçes, equivalentes aos orixás nagôs, e após os cânticos têm início o transe dos filhos-de-santo pelos seus respectivos Exus, esses Exus diferem do Exu africano, são espíritos de indivíduos que tiverem uma conduta moral transgressora: bêbados, malandros e prostitutas, essa ideologia advém do espiritismo Kardecista em que essas entidades estariam em estágio de evolução cármica. Curiosamente, essa modalidade de culto se processa em casas que também reivindicam a tradição nagô. A exemplo do terreiro Ajaguna de pai Beto de Oxalá que foi sistematicamente estudado na pesquisa do mestrado. O terreiro é classificado pelo pai-de-santo como Keto, recorrendo às vezes a uma linhagem Angola. Não obstante, incorpora os comportamentos rituais da umbanda. Afirma o pai Beto respeitar a umbanda, mas não se mostra muito adepto das práticas e ideologias, explica que é forcado pelas pressões do mercado religioso, quando afirma que só cultua Pomba Gira pela procura de suas clientes, segundo ele algumas dessas senhoras saem dos seus carros manifestadas, pedindo-lhe cigarro e bebidas.